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Contradições que geram cicatrizes

O Livro Negro, de Orhan Pamuk, é obra central para entender relação entre Ocidente e Oriente, dois mundos incomunicáveis

Por Vinicius Jatobá
Atualização:

Orhan Pamuk torna-se plenamente Orhan Pamuk com O Livro Negro. É natural que um escritor transite entre diversas máscaras emprestadas até encontrar sua voz, flertando com estilos admirados e motivos emprestados até que exile de seu próprio rosto as marcas profundas de seus mestres. Toda trajetória de um escritor é um combate para tornar seu nome definição de seu próprio nome - a assinatura contagiando o texto com personalidade única e inconfundível. Todo livro é um amálgama de leituras, de influências; um corpo costurado de retalhos eleitos pela afeição do leitor que mora no escritor. No entanto, há um momento em que tudo se particulariza: o escritor não pode mais escapar de seus próprios defeitos, as lacunas do que escreve são os vazios de sua própria personalidade. É um mistério enorme o motivo desse salto, quando o escritor passa a assinar sozinho seu próprio texto; impossível delimitar a substância que alimenta essa virada. Os grandes escritores possuem esse livro solitário, esse grito de independência - Marías (Coração Tão Branco), Makine (O Testamento Francês), Lobo Antunes (Exortação aos Crocodilos), McEwan (Reparação), Sebald (Os Emigrantes), para citar alguns exemplos recentes -, e O Livro Negro é esse instante mágico na trajetória de Pamuk em que sua assinatura torna-se nobre adjetivo de si mesma. O Livro Negro é um estranhíssimo livro policial. Seu enredo é simples: o advogado Galip é abandonado sem qualquer explicação pela sua mulher, e decide vasculhar Istambul em busca de seu paradeiro; ao mesmo tempo, seu primo Celal, meio-irmão de sua mulher, também desaparece, e Galip suspeita que estão juntos. O livro narra essa investigação e é entremeado por reproduções dos artigos da coluna de Celal publicadas num dos principais jornais turcos - são crônicas sobre a cidade, descrições quase amorosas sobre o humor das ruas de Istambul, suas idiossincrasias e detalhes. O mais fascinante nesse romance é que, a partir de um enredo tão simples marcado por algumas reviravoltas, Pamuk endereça questões capitais para sua obra: o conflito entre Oriente e Ocidente, a natureza da admiração e do ciúme, a tentação da troca de identidades. Galip passa a assinar as colunas de Celal, toma seu apartamento e suas roupas, passa a agir e se comportar como seu meio-irmão numa tentativa de, a partir de seus olhos, encontrar o paradeiro de sua amada. O tema muito pamukiano de corpos que dominam corpos e mentalidades que dominam mentalidades em O Livro Negro sua mais esgarçada representação - ela é pouco evidente, entremeada pela prosa lírica das descrições da rua, fintada pelo apelo constante à leitura policial, mas está ali no texto em suas entrelinhas. Mas o cerne de O Livro Negro é a primeira inegociável variação na ficção de Pamuk da constância de personagens que se enamoram tanto pelo outro que acabam lutando para substituí-los. Mais, inclusive: um exercício de uma espécie muito particular de crença de Pamuk em uma antifatalidade cultural: como se os corpos fossem apenas recipientes que possuem a potência imaginativa de migrar entre diversos conteúdos. O que é sutil e poderoso em O Livro Negro é esquemático em seu livro anterior, O Castelo Branco, onde um astrônomo veneziano e um sultão turco trocam de identidades ao final do romance. Em todos os romances de Pamuk existe essa potencia migradora, e o conflito das personagens está na tentação dessa mudança e o caminho ético que percorre para alcançá-la. Em Meu Nome É Vermelho os assassinatos são motivados pelo temor dos impactos culturais dessa migração, as conseqüências da influência de uma forma de representar o mundo em outra; já no romance La Vida Nueva um jovem embarca em uma viagem pelo interior da Turquia movido pela paixão que a possibilidade de ser outro lhe é revelada ao ler um livro seminal e misterioso. O curioso que o próprio romance O Livro Negro traz em sua massa textual essa questão angustiante. Há nele uma pergunta não anunciada: como escrever um romance turco? Como conjugar uma cultura cindida entre uma modernização recente e restos de cultura otomanas com um gênero representativo dessa modernidade e narrativas sufis e corânicas que existem fora das especificidades desse gênero? As constantes epígrafes denunciam a ansiedade de seu autor, e o gigantismo do livro, sua prosa transbordante, pouco equilibrada, demonstra o milagre de um artista descobrindo algo tateante sua voz - e avançando em campo pouco seguro - com os olhos ainda focando a agora se distanciando antiga situação confortável de emulação - os autores prediletos. Os livros após O Livro Negro são apolíneos e elegantes, seguros, confiantes; possuem uma autoridade tranqüila - basta ler Neve para notar isso. O que particulariza a obra-prima de Pamuk é justamente seu solo pouco confortável que traz marcas e cicatrizes de dois movimentos contraditórios: de um lado, a força de destruição do romance canônico diante de materiais e temas que "cabem" tortos numa forma narrativa que nunca as contemplou; e, de outro, a fascinação positivamente pasmada diante do maquinário do gênero romance, sua plasticidade que homenageia com sua escrita em pastiche e reconfiguração permanente. Dessa forma, O Livro Negro é todo uma poética: existe como máquina de estilhaçamento e reconstrução de linhagens mestras do Ocidente e Oriente. Um romance central para o entendimento do conflito entre esses dois mundos que as ideologias tornam incomunicáveis, seminal para que futuras gerações de autores divididos entre culturas em diálogos embargados pelos interesses sectários encontrem suas próprias vozes e mecanismos de escrita. Apenas um Nobel para Pamuk foi pouco. Vinicius Jatobá é crítico literário

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