Contracultura revisitada

O Sesc Pompéia abre amanhã o projeto Vida Louca, Vida Intensa, que reúne a produção de alguns dos maiores nomes da cultura alternativa dos anos 1960

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Ao participar há algum tempo de um encontro que discutiu os movimentos sociais dos anos 1960, o antropólogo Gilberto Velho cunhou uma frase definitiva sobre a atitude transgressiva de escritores, músicos, cineastas e pintores que se rebelaram contra a cultura então dominante: ''A contracultura é uma possibilidade permanente da vida social.'' O que Gilberto Velho quis dizer com isso é que a contracultura não foi um movimento restrito a uma época. Se a sociedade é dinâmica, é lícito esperar que seus membros mudem o tempo todo. ''A vida social só existe porque existe mudança, e só existe porque existe diferença'', diz ele no livro Por Que Não? - Rupturas e Continuidades da Contracultura (Editora 7 Letras), leitura recomendável num momento em que o Sesc Pompéia se prepara para ser a sucursal da São Francisco dos anos 1960, a partir de amanhã, data de abertura do projeto Vida Louca, Vida Intensa - Uma Viagem pela Contracultura. Organizado pelo designer Eduardo Beu, o projeto engloba projeções de filmes da época, uma exposição cenográfica com pôsteres, capas de discos, debates, leituras de poemas da geração beatnik, concertos com músicos estrangeiros e brasileiros e até uma performance para comemorar os 40 anos do histórico ''Verão do Amor'' em São Francisco, a liberal cidade da costa oeste dos EUA, quando jovens ousaram contestar os valores mais sagrados da sociedade americana - como o dinheiro -, propondo seu estilo alternativo de vida: uma subcultura capaz de promover minorias e manifestações criativas subterrâneas e autônomas, sem compromisso com a indústria cultural de entretenimento. Muitas pessoas confundem contracultura com o estilo de vida hippie dos anos 1960, mas o projeto Vida Louca vai mostrar durante dois meses que é um equívoco opor movimentos contraculturais à negação do conhecimento acadêmico ou universitário. Escritores beatniks nunca foram iletrados, assim como os designers que revolucionaram a arte gráfica da época, os pintores que inventaram a arte pop ou os cineastas underground que produziram alguns dos melhores filmes experimentais de todos os tempos. Alguns deles, raríssimos, foram resgatados pelo curador Eduardo Beu em lugares como a Biblioteca do Congresso americano, como The Hippie Revolt, documentário (também conhecido como Something''s Happening) - ingênuo, mas histórico - dirigido por Edgar Beatty em 1967, que mostra jovens de Sunset Strip, Los Angeles, ou do bairro Haight-Ashbury, São Francisco, em viagens alucinantes de ácido lisérgico (LSD) ou simplesmente dançando em discotecas com projeções psicodélicas sobre seus corpos. Eduardo Beu e os jovens que devem ser atraídos pela mostra nem eram nascidos quando Peter Fonda e Dennis Hopper colocaram os pés na estrada e fizeram o filme-síntese da geração 1960, Sem Destino (Easy Rider, 1969), um dos programados da mostra de cinema que traz, entre outras atrações, o revolucionário If (Se, 1969), de Lindsay Anderson, sobre estudantes de um colégio burguês inglês que se armam e iniciam uma revolução em pleno campus. Aos 36 anos, o designer Beu revela um interesse não meramente antropológico sobre o fenômeno contracultural. Para ele, filho pródigo de uma família burguesa, a ''crítica ao sistema'' que jovens artistas e músicos fazem no século 21 não apagou os traços de uma herança que se traduz, segundo Beu, especialmente no mundo virtual da internet, prova maior da continuidade do projeto da contracultura, que sobrevive na construção gráfica de sites, nos filmes amadores colocados no YouTube ou simplesmente nos projetos pessoais que circulam pela rede. ''Não se trata de simples nostalgia dos anos 1960, mas da continuidade de uma cultura que conquistou a liberdade de expressão, permitindo a afirmação de uma ótica subjetiva, independente e avessa a idéias predeterminadas'', diz Beu. A contracultura, filha do movimento beatnik com o rock e mãe dos alternativos dos anos 1960, produziu exemplos à beça dessa afirmação de independência ideológica, dos escritos de William Burroughs sobre suas experiências com drogas aos filmes experimentais de Jonas Mekas (há, na mostra, um documentário dele sobre Andy Warhol). Seus reflexos incluem o movimento tropicalista brasileiro, encabeçado pelo hoje ministro da Cultura Gilberto Gil, que, em 1969, bradava (na canção Cultura e Civilização, gravada, na época, por Gal Costa): ''A cultura, a civilização, elas que se danem, eu não.'' Para discutir temas como a experiência antropofágica que levou à criação do tropicalismo, a influência lisérgica nas artes, o advento do multiculturalismo, a rebeldia estradeira dos beats, o papel das minorias e a literatura alternativa, o curador do projeto convidou alguns dos sobreviventes da alucinada experiência dos anos 1960, entre eles o jornalista Luiz Carlos Maciel, uma das vozes mais lúcidas da época, que ainda hoje destaca o papel que tiveram os alternativos na difusão da filosofia oriental e na invenção de uma sociedade paralela, alternativa, em que o dinheiro perde sua importância. Além de Maciel foram convidados romancistas como João Silvério Trevisan, poetas como Roberto Piva e Chacal, o ensaísta Cláudio Willer e mais uma multidão de jornalistas de expressão, entre eles Ana Maria Bahiana e Xico Sá. Um evento como esse, claro, não seria completo sem música. O grupo suíço Young Gods (ídolos do Chemical Brothers) vai exercitar seus dotes eletrônicos com a cítara de Alberto Marsicano e com o cantor Júpiter Maçã prestando uma homenagem ao beatle George Harrison. Prepare os ouvidos. A programação de maio traz mais surpresas. Cinema Rigor, para os alternativos da contracultura sessentista, era sinônimo de ''rigor mortis'', endurecimento. A transgressão de poetas, pintores, músicos e cineastas não se resumiu à contestação de padrões culturais fixos, mas, antes, proclamou que não existe diferença entre alta e baixa cultura, entre vida e arte, tributo que toda essa geração pagou a Artaud e aos ''loucos'' que o precederam. O projeto Vida Louca tem vários exemplos desse trânsito insano e intercultural, sendo um dos mais transgressivos o filme Coonskin, retrato do negro na América feito por Ralph Bakshi, criador de Fritz the Cat, o gato mais subversivo da história dos quadrinhos. Foi especialmente construída para a mostra de cinema - uma seleção de filmes de Lindsay Anderson, Barbet Schroeder, Jodorowsky, Gainsbourg, Terry Gilliam e Cronenberg - uma sala de 80 lugares acolchoados para que os espectadores possam sentir os efeitos lisérgicos da Viagem ao Mundo da Alucinação, o cult de Roger Corman, que mostra uma bad trip de LSD. Além dos filmes, o projeto inclui um pocket show em tributo ao poeta e visionário William Blake. Serviço Vida Louca, Vida Intensa - Uma Viagem pela Contracultura. Sesc Pompéia. Rua Clélia, 93, tel. 3871-7700. 3.ª a sáb., 10 às 21h (dom. até 20h). Preço dos shows: R$ 6 a R$ 24. Restante grátis. Até 22/6. Abertura amanhã (convidados) e na quarta (público)

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