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Conspirações e segmentações

Por Roberto DaMatta
Atualização:

Quando acontecia algum drama nacional nos Estados Unidos - o ataque terrorista às torres, o assassinato de crianças por mães perturbadas, o assassinato de colegas por estudantes insanos, os escândalos sexuais de presidentes da república -, espantava-me a atitude circunspecta dos americanos diante dos eventos. Lá, eu jamais ouvi a insinuação de que o interlocutor fosse amigo, primo ou compadre de alguém que tivesse alguma informação secreta ou oculta do acontecido; ou soubesse de alguém ''de cima'' (ou ''de dentro'') a verdadeira versão dos fatos. Com efeito, o que me surpreendia, no caso americano, era a ausência de três dimensões sempre presentes nos ''casos'' nacionais. A primeira, era a ausência de generalização, pois nos Estados Unidos havia sempre uma firme convicção nominalista de que cada caso era um caso, cada indivíduo era uma entidade distinta dos outros, de modo que os dramas eram sempre circunscritos e localizados. Lembro-me nitidamente das palavras de um amigo numa discussão do caso Clinton-Monica Lewinski, quando ele, veemente, lembrava que Washington era uma cidade especial, os democratas feitos de barro singular; e, por fim, que estávamos em South Bend, Indiana, e que seria mais proveitoso discutir os nossos problemas. Como já havia notado Tocqueville, em páginas que todos os proponentes do tal ''estado forte'' deveriam ler, na América, mesmo diante do federal, o local é sempre importante. Aqui, entretanto, fazemos a contrário e todos os eventos são imediatamente generalizados, fazendo com que o drama do botequim contamine o País, quando não o planeta, conforme prova a expressão ''o mundo não tem mais jeito...'' A segunda dimensão era a leitura objetiva, direta. Na América, os fatos são fatos e pouco se discute seu contexto, interesses e autores. Um jornal bem reputado não é autor, é espelho. Para um brasileiro, tocado a pós-modernismo sem saber, o americano carece de desconfiança, o que promove a suspeição de que tal como o Pato Donald, ele oscila entre o ingênuo, o hipócrita e o cretino. Um dos resultados mais nítidos dessa crença numa ''verdade'' única e livre de ponto de vista é a ausência de múltiplas versões e, em conseqüência, dessa inflação de variantes que os eventos sempre assumem entre nós. Pois no Brasil cada fato tem, como sabemos mas ainda não compreendemos, múltiplas versões. É, a meu ver, essa latitude que faz com que tenhamos como companheiras inseparáveis dos eventos a figura da conspiração, essa mãe de um pensamento mais próximo de salvar as pessoas e condenar as instituições do que fazer o oposto, como foi o caso dos americanos diante de Watergate. As fórmulas das versões conspiratórias são padronizadas. O sujeito diz: ''Certo, mas a verdadeira história não é bem assim...''; e solta a versão do que teria realmente ocorrido, como foi o caso daquele frentista que me garantia como o selecionado brasileiro de futebol havia sido comprado depois da derrota contra a França em 1998. Inútil argüir que a glória vale mais do que o dinheiro (porque vira muito mais dinheiro); em vão relembrar que, em futebol, a derrota está à espreita. A teoria da conspiração dá voz ao que somos: um sistema no qual cada segmento tem a sua perspectiva dos eventos. A parcela mais moderna aceita o acaso; entende a corrupção pelo poder e no poder; e compreende a mentalidade totalitária; a mais tradicional, relacional e hierárquica, porém, assume que por trás de todo acontecimento há uma causa humana e uma motivação pessoal, como a inveja, a cobiça, o ódio, a desonestidade ou o desamor. No passado, as múltiplas versões eram rotina. Como não ter duas versões dos fatos num sistema feito de senhores e escravos? Numa sociedade com reis, bispos, barões e gentinha? Como não interpretar de modo diverso um mesmo fato numa coletividade fechada, nas qual um grupo pequeno detém a maior parte da riqueza e, muito pior que isso, as fórmulas de dominação circulantes? A inflação de versões corresponde exatamente à segmentação dos grupos. Se cada pessoa acrescenta um ponto no evento que vira um conto, como naquela famosa narrativa de Machado de Assis, cada fato dramático vira uma conspiração aos olhos do governo; ou se transforma em chantagem quando visto pela opinião pública. Outro dia fiquei sabendo que Tancredo Neves não morreu de doença. Foi assassinado numa missa com um tiro à queima-roupa. ''Abafaram o caso'', disse-me o sério e elegante motorista que contava a história. ''Não chegou nem a sair no jornal!'', completou, definitivo. O mesmo teria acontecido com JK, Getúlio e Jango. Só os ingênuos não sabiam. D. Pedro II não entrou na lista porque o nosso horizonte temporal não chegava a tanto, mas o Lula entrou como outra vítima: ''Não o deixam governar.'' Imagine se deixassem, pensei com os meus botões e corri para o computador para escrever esta crônica. Compreendi então por que o negócio do dossiê não podia dar certo. Iríamos acabar transcendendo os mais baixos interesses políticos e acabar falando de uma dimensão fundamental do Brasil. Do fato de que as conspirações são os sonhos de cada um dos segmentos que nos formam e complementam. Eles são a ausência mais absoluta de um plano cívico comum.

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