''Consagrado, ele continua um enigma''

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Por Leopoldo Bernucci
Atualização:

biografia de Euclides da Cunha sempre me interessou, mas nunca do ponto de vista da análise. Nos últimos tempos, porém, para ajudar um amigo, Frederic Amory, falecido recentemente (de quem estamos prestes a publicar aqui Euclides da Cunha: Uma Odisséia nos Trópicos), retomei o tema, que no caso de Euclides se torna complicado pelo desencontro de informações. Não sou seu biógrafo, mas reconheço a utilidade das biografias realizadas, dando a conhecer a vida do autor, seus textos e a visão de seus contemporâneos. Eu me refiro aqui a algumas conhecidas, como a de Eloy Pontes, Francisco Venâncio Filho, Silvio Rabelo, Olímpio de Souza Andrade, Leandro Tocantins e Roberto Ventura. Como também a esboços biográficos de Walnice Galvão e Luiz Costa Lima. Walnice, por exemplo, investigou os anos decisivos que Euclides da Cunha passou na escola militar. É pouco comum para um escritor receber tanta atenção. Ficou por todos nós conhecida a maneira pela qual foi consagrado como escritor nacional logo após a sua morte em 15 agosto de 1909. Se em vida, depois da publicação de Os Sertões, ele granjeara a glória literária e o respeito intelectual, já morto a sua estatura de grande escritor não parou de crescer e até hoje nos surpreende. Apesar dessa glorificação, que faz jus à sua obra, resta saber se realmente ela tem sido lida e compreendida até os dias de hoje. As últimas pesquisas realizadas demonstram que, de modo geral, Euclides não tem sido bem lido; que ao longo dos anos até mesmo os especialistas do autor tem passado por alto aspectos relevantes do seu principal livro, Os Sertões. O que impulsionou aqueles admiradores a iniciarem um culto para venerar um escritor, cuja obra acabou sendo pouco lida e gerando controvérsia? E mais: seria preciso entender tudo o que Euclides escreveu para apreciá-lo e reconhecer os seus méritos? Tais perguntas nos colocam diante de duas realidades muito bem definidas, que são a dos seus estudiosos e a dos leitores menos preocupados em dissecá-lo, aqueles que principalmente buscam nele o prazer da leitura gerado a partir de sua tão particular e bela linguagem. A lição deixada por Euclides é a da relevância da busca de conhecimento, da exploração de saberes não diretamente ligados especificamente à nossa formação. Quão fascinado Euclides se sentia diante de algo que ele apenas entendia ser o começo de uma longa jornada que o levaria à compreensão de um fenômeno social ou da natureza! É assim, como vamos vê-lo nas inúmeras biografias disponíveis e que, sem exceção, contribuíram a configurar a sua imagem de homem e escritor. Se é só por meio de suas biografias que temos condições de julgá-lo na sua condição de homem, pai de família e engenheiro, estas desempenham papel preponderante ao definir o caráter, as idiossincrasias, os valores morais, as virtudes e os vícios do homem. Eu gostaria agora de colocar as diferentes vidas de Euclides em relação contígua com um dos gêneros biográficos mais antigos, a hagiografia. Se a função principal da hagiografia é informar-nos sobre a trajetória da santidade do indivíduo e nos convencer de suas virtudes e seus milagres, as biografias sobre Euclides tem seguido percurso parecido. No modelo hagiográfico há certas fases da vida do biografado que devem ser incluídas no relato da vida do indivíduo pio. Destaco apenas algumas: a conversão, as provações, o martírio, os milagres e a canonização. A trágica morte de Euclides, a despeito dos esclarecimentos legais que absolveram Dilermando de Assis, é o tipo de morte que não se pode chamar até hoje de assassinato, porquanto o agredido agiu em legítima defesa. Dilermando não pôde porém eximir-se diante dos admiradores do escritor, que viram Euclides como um mártir que, depois de sofrer inúmeras provações na vida (o seu esforço para consolidar a carreira de engenheiro, a luta diária para o sustento da família, o fracasso matrimonial), ofereceu o peito ao verdugo que veio a aliviar as suas dores. Euclides da Cunha ficaria conhecido também como o grande escritor injustamente sacrificado e cuja ausência seria irreparável. Qual foi o seu grande milagre, então? Ser todas essas coisas e não ter cedido à vulgaridade de encontrar-se na patética situação de justificar publicamente todas as imperfeições de sua mundana existência. Como entender que na sua atribulada e desgastante vida de engenheiro pudesse Euclides produzir um livro como Os Sertões? Como compreender que apesar de sua lamentável e dramática relação familiar, possivelmente decorrente do trauma de ser órfão de mãe e viver sempre longe do pai desde menino, pôde ele construir toda a sua carreira intelectual? Euclides continua sendo um enigma. PALESTRANTES LEOPOLDO BERNUCCI: Professor de Literatura Latino-Americana da Universidade da Califórnia, organizou Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha (Edusp) e, com Francisco Foot Hardman, Euclides da Cunha: Poesia Reunida (Editora Unesp), que será publicado em outubro. JOSÉ LEONARDO DO NASCIMENTO: Professor do Instituto de Artes da Unesp, é autor de, entre outros, Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Unesp) e de Primo Basílio na Imprensa Brasileira do Século XIX (Unesp). Com Valentim Facioli, escreveu Juízos Críticos (Unesp). JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA: Ator, dramaturgo, diretor e fundador do Teatro Oficina, de São Paulo, realizou a ambiciosa adaptação de Os Sertões para o palco entre 2002 e 2006. Estruturou a sua montagem em cinco espetáculos - Terra, Homem I, Homem II, Luta I e Luta II.

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