Competição entre as majestades

Duas visões sobre Rainha (s), que mostra o embate entre as primas Mary Stuart e Elizabeth I

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Por Redação
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A tragédia em duas facetas Mariangela Alves de Lima No território da arte, no qual o imaginado e o possível se confundem, a hierarquia entre as etapas da criação se define apenas para ser desrespeitada. Cada novo receituário, por mais sensato na aparência, contraria o impulso para a liberdade criativa ou para a franca e deslavada desordem. De um modo geral, a marcha da vanguarda, não obstante o referente militarista, é um tropel de ritmo irregular e direção incerta. Para os atores, a dissolução das funções específicas outorga o direito de imaginar histórias, escrevê-las, organizá-las como signos espaciais e temporais e, ainda por cima, interpretar personagens. Essa abertura vertiginosa, própria do teatro e explorada de modo intensivo, inclusive por artistas contemporâneos formados em outras linguagens (músicos, artistas plásticos, escritores), ameaça tornar-se recorrente e, por esse motivo, já incita rebeldias. As moças que conceberam o texto, a encenação e, por fim, atuam em Rainha (s) - Duas Atrizes em Busca de Um Coração estão trilhando uma vereda alternativa. Em primeiro lugar, a "livre recriação" da peça Mary Stuart, de Friedrich Schiller, é um exercício de admiração pelo trabalho e, a julgar pelas citações, pela versão inspiradíssima de Manuel Bandeira. O abandono de antigas competências, como as do dramaturgo, do diretor e do cenógrafo, pode ter ampliado o espaço do intérprete, mas há um repertório do passado em que cintilam, de modo singular e também como um patrimônio do teatro, personagens sedutoras e relações dialógicas ancoradas na linguagem literária. A admiração, contudo, é parte de um projeto cênico que não dispõe de instrumentos para submeter-se ao desígnio do texto e "revelá-lo", como o faziam as grandes companhias estáveis do século passado. Intérpretes de hoje, como as atrizes-dramaturgas Georgette Fadel e Isabel Teixeira e a diretora Cibele Forjaz, fazem da aproximação dessa obra do passado o tema da sua dramaturgia. A ambição de realizar no palco o desígnio contido na literatura dramática supõe um modelo ideal de espetáculo e esta é uma crença que os dramaturgos do Romantismo ajudaram a demolir. A idéia mestra dessa recriação é, portanto, examinar os pontos de contato entre a experiência e a sensibilidade de artistas contemporâneos e a de criaturas imaginárias nascidas no final do século 18. Vivendo agora na cena desmistificada, sem o concurso do ilusionismo, mas também sem o apoio da cena italiana, que pode esconder a feitura e exibir apenas o valor de face da representação, as duas rainhas históricas (século 16) impõem-se como figuras dignas de terror e piedade a partir de um mote oferecido pelo próprio Schiller: "Os ardis da razão sempre levaram o homem ao erro." Sendo assim, é o conteúdo passional das argumentações, a busca do "coração", entendido como motivo central, que orienta o desenho das personagens em cena. Duas atrizes que chegam envergando simbolicamente a "máscara de atriz" devem preparar-se em cena para o momento em que colocarão as máscaras das soberanas Stuart e Tudor. Em alguns momentos do espetáculo, a idéia parece melhor do que a solução. A aproximação reverente, lenta, quase uma invocação religiosa para que não se perca o momento teatral e para que se faça justiça à fonte de inspiração é pronunciada na linguagem contemporânea mesclada a poemas e citações da mitologia cênica e é, em geral, bonita e expressiva, impregnada de uma emotividade sem exagero. Os movimentos de apresentação e investidura solene das personagens reais estão em paralelismo com a alta poesia de Schiller. Há, no entanto, inserções coloquiais extraídas do cotidiano fictício de atores atribulados, correndo atrás da sobrevivência ou atrapalhados pelo trivial. Nesses trechos, certamente destinados a forjar uma ligação com o presente do espectador, as ironias aplicadas ao ofício e às agruras da vida urbana são banais além da medida. Para um espetáculo que lida com poesia de diferentes épocas e cuja sobriedade, quando precisa informar o público, é de uma secura brechtiana, a intromissão de crônicas é uma ruptura estranha. No andamento privilegiado pela direção, em que se alternam grandezas próprias de duas épocas, o tempo agitado da representação naturalista parece um truque para retardar os acontecimentos realmente importantes. Além disso, o lirismo, a ênfase passional e a solenidade ritualística são os traços estilísticos que as atrizes dominam. Nenhuma das duas se sai bem quando os diálogos exigem inflexões irônicas. Sendo, entre outras coisas, um exercício que põe à prova a potência dos recursos de hoje para formalizar o sublime, essa recriação de cenas da peça de Schiller funciona como um triunfo exemplar. Com um gesto preciso, a exibição de um vestido indica a instauração de um espaço imaginário e a transformação de personagens, um coração faz-se de quase nada e um utilitário transmuda-se em coroa real. Todas essas mutações são bem-sucedidas porque enraizadas nessa nova crença fundada no reflexo das coisas, e não mais no sentido único. Diz a ama de Maria Stuart: "Enquanto a sua imagem ela puder rever, não cessará de esperar e de ousar." Elo do imediato com o infinito Jefferson Del Rios Rainha (s), na realidade, são três princesas do teatro paulista. Juntas, elas criaram o espetáculo com trechos da peça Mary Stuart de Schiller e invenções da diretora Cibele Forjaz e das atrizes Isabel Teixeira e Georgette Fadel. Há uma margem de risco na proposta. Algo áspero, imperfeito, diamante bruto, mas com a cintilação do brilhante já aparecendo. Teatro vital pode ter desses desequilíbrios, deve tê-los, dizia Victor Garcia, o inesquecível diretor de Cemitério de Automóveis, de Arrabal, e O Balcão, de Jean Genet, espetáculos que arrebataram São Paulo naquele tempo, nos anos 70. A linha histórica da montagem refere-se às primas Mary Stuart, rainha da Escócia (1542-1587), e Elizabeth I, da Inglaterra (1533-1603), quando, no século 16, essas regiões do atual Reino Unido eram ainda separadas, embora formando a mesma ilha. Por razões políticas, estratégias de Estado e disputas religiosas, essas mulheres se enfrentaram por 20 cruentos anos. A História, majoritariamente, é feita por homens, muitas vezes violentos. É uma visão de mundo tão enraizada que nos espantamos quando se constata que o feminino pode ser igualmente implacável. Catarina da Rússia não é um exemplo isolado. Séculos mais tarde, a partir de 1944, a Cortina de Ferro baixou sobre o Leste Europeu e a Romênia conheceu a mão pesada de Ana Pauker (1893-1960), vice-primeira-ministra e fiel servidora de Stalin. Sem falar muito de Margaret Thatcher e dessa enigmática Condoleezza Rice, que negociou com o mundo em nome do império americano. O poeta e dramaturgo alemão Friedrich Schiller fez da rivalidade humana e política uma obra de enorme carga dramática, reproduzida periodicamente desde sua aparição, em 1800. Uma de suas versões, na Inglaterra, colocou frente a frente as excepcionais Vanessa Redgrave (Mary) e Glenda Jackson (Elizabeth). No Brasil, em 1955, foi um dos momentos altos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) com as irmãs Cacilda Becker e Cleyde Yáconis, dirigidas por Ziembinski. Façanha repetida, em 1997, por Renata Sorrah e Xuxa Lopes, dirigidas por Gabriel Villela, e agora por Isabel e Georgette. Esse espetáculo é uma inovação e - vale repetir - um risco. É teatro dentro do teatro para nele incluir temas femininos e artísticos gerais, e as próprias vidas das intérpretes. Com fita crepe, criaram no meio do palco um círculo, labirinto ou - quem sabe - uma roda de candomblé, e nele elas circulam com suas fantasias e insolências de artistas e mulheres. O fio do original (Schiller) e da História (as rainhas) freqüentemente é rompido com momentos de divagações banais e opções estéticas discutíveis (trajes grunges, super-representação, citações não claras). Mas tudo com energia contagiante, a peça correndo dentro da noite veloz. Subitamente, porém, Schiller impõe um tom de cerimonial imponente. Em minutos, o espectador transita de um espaço da Avenida Paulista para o Castelo de Fotheringhay, onde Mary Stuart foi decapitada. Não é um jogo fácil, mas Cibele Forjaz juntou o infinito com o imediato dentro da cenografia de Simone Mina, em que um lustre pode ser coroa de luzes ou cárcere iluminado. Georgette Fadel, uma vez mais, confirma seu temperamento impulsivo, sobretudo quando assume por inteiro Elisabeth I, a soberana da dinastia Tudor que transforma a Inglaterra em potência marítima. Rainha com seu mando tão sutil quando implacável. Como atriz, tem algo de loba em um laranjal paulista. Doce e feroz. Para Isabel Teixeira, chegou sua hora e sua vez. Já dera sinais de talento e, agora, voa mais alto, mostrando ser a sobrinha-neta de Margarida Rey (1922-83), dama do teatro brasileiro. Circulando entre ambas, delicada presença no arrumar as cenas, Elisete Jeremias faz o público lembrar-se que tudo é verdade, mas é tudo teatro. Não um teatro da tradição cultural do Ocidente, a arte bem-feita segundo os cânones, mas outro, inquieto, imperfeito aqui e ali, e denso. Parece que dentro de Rainha (s) há uma mãe-de-santo definindo a narrativa com versos de Paulo Celan, outro poeta de língua alemã: "Um dique de palavras, vulcânico, afogado pelo rugir do mar." Serviço Rainha (s) - Duas Atrizes em Busca de um Coração. Sesc Avenida Paulista (80 lug.). Avenida Paulista, 119, 3179-3700. 6.ª a dom., 20h30. R$ 5 a R$ 20. Até 21/12

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