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Como traduzir um ritual: a ''posse'' de Obama

Por Roberto DaMatta
Atualização:

Viver é traduzir e traduzir, como dizem os entendidos, é negociar. Ou trair, para lembrar um velho ditado italiano. Na semana passada, ao falar dos presentes que põem as pessoas no topo de todas as possibilidades, como é o caso de Barack Obama, disse que, em alemão, presente e veneno eram designados por uma mesma palavra. Cássio Loredano, consagrado caricaturista, Thomas Bussius, H.G. Rost e Guilherme Ernesto Constantino, leitores atentos e assíduos, notaram o meu erro. Exagerei. Na verdade, o que mestre Marcel Mauss afirma é uma relação arcaica contida nas línguas germânicas entre as palavras "presente" e "veneno". Trata-se de um sentido pretérito, mas que conduz as ligações ocultas - e surpreendentes, esse é o ponto - entre presentear e envenenar mencionado na crônica. Pois muito receber acaba envenenando, como ocorre com os favores recorrentes - quando a esmola é muita o pobre desconfia - e o drinque aceito sem pensar. Que o diga Sansão, o primeiro a tomar um "boa noite Cinderela" de Dalila; ou os que aceitam "presentes de grego", como o cavalo de Troia. Receber implica, como descobriu Mauss, em "dever o favor", o que ordena o próximo passo: a obrigação de devolver a coisa recebida, o que estabelece um elo às vezes de inquebrantável superioridade entre o doador e o recebedor. No caso da investidura de Obama, o rito junta o mortal, marcado por seu programa, partido e momento, a um cargo exclusivo que a ele sobrevive e não pertence a nenhuma pessoa, corporação ou partido político, mas à coletividade - a um estado nacional que, por meio do voto, confia-lhe a incumbência por um período de tempo determinado. É o que distingue um presidente eleito dos reis, dos ditadores e dos caudilhos. Sugiro que o verbo "inaugurar? salienta esse empréstimo do papel de presidente por tempo determinado a um eleito. No Brasil, esse ato é traduzido como uma "posse". Palavra que invoca uma apropriação, deixando ver; de um lado, um viés salvacionista segundo o qual, os "ricos" e os da "classe média" não precisam de governo, desenhado para servir aos "pobres"; e, do outro, que o eleito tudo pode porque, no fundo, ele não administra o que é de todos, mas manda e cuida do que, depois da posse, seria dele. A mim impressiona como, entre nós, um processo ritual complicado: diplomação, discurso, assinatura da posse e a passagem na faixa presidencial contrasta com o breve juramento de defender e seguir a constituição em cima da Bíblia, invocando Deus, mas não Jesus Cristo e muito menos a Virgem Maria dos americanos. Lá, o curto rito de inauguração é complementado pelo discurso (seria melhor falar em sermão calvinista) que equilibra como pode o "deísmo" contido na ideologia política americana, com eventos e problemas que o novo presidente foi eleito para enfrentar. Nesse discurso há uma histórica reunião de política com religião, algo, aliás, que só pode surpreender os que ignoram a história americana. De fato, num sistema político baseado na prática do individualismo e da liberdade, o problema crítico sempre foi o de como equilibrar as mais variadas autonomias (ou "liberdades"), com políticas nacionais requeridas pela dinâmica do sistema como um todo. Como manter a "união" sem ferir as liberdades locais e individuais (os interesses) foi (e ainda é) o problema básico nos Estados Unidos. Mas debaixo desse Deus calvinista todo-poderoso, ritualmente invocado, cabe tudo. Até mesmo - como disse Obama - os descrentes, desde que as regras sejam seguidas. No Brasil, falar em modernidade equivale a liberar o local por meio do mercado e pela divisão de responsabilidades entre o governo federal, os Estados e os municípios, pois o todo (a dimensão federal) sempre foi muito mais forte e abrangente do que as partes. Já no país de Obama, tem-se o oposto. Daí a ênfase ritual num juramento de manter as regras do jogo, tendo um Deus impessoal e o povo como aval e testemunho. Entre nós, porém, a faixa presidencial entregue pelo presidente que sai ao que entra é o clímax do rito de passagem. A faixa é atravessada pelo empossado que a penetra e possui. Seria um exagero dizer que ela, mais do que a constituição, simboliza o englobamento físico do papel de presidente por uma pessoa concreta? Pelo sujeito que, de agora em diante, encarna a República? No mais, na inauguração há também a ênfase numa esperada ação imediata, um traço marcante de quem ocupa posições de liderança nos Estados Unidos. Como nos velhos westerns, o líder é dotado da coragem de dar o primeiro tiro (caso de vários presidentes, em geral, e dos dois Bush, em particular). A ele cabe deflagrar o disparo real ou simbólico que vai finalmente tirar do buraco esses Estados Unidos com a garantia, conforme eles acreditam, de Deus. Ao cronista que fala demais e traduz com exagero, só resta esperar que tudo dê certo, como nos filmes antigos...

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