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Como dois amigos fizeram história na arte comprando uma obra digital de 70 milhões de dólares

De início, Vignesh Sundaresan e Anand Venkateswaran nem sabiam ao certo se tinham acabado de gastar 69,3 milhões de dólares numa obra de arte digital de um artista chamado Beeple, garantindo seu lugar na história da arte

Por Matt O'Brien e Kelvin Chan
Atualização:

Demorou alguns minutos para Vignesh Sundaresan e Anand Venkateswaran perceberem que tinham empatado 69,3 milhões de dólares por uma obra de arte digital armazenada num arquivo JPEG, distraidamente garantindo seu lugar na história da arte.

'Everydays: The First 5,000 Days': colagem do artista americano Beeple, um pioneiro do mercado de arte virtual, foi vendida por 69,3 milhões de dólares, um recorde para uma obra digital. Foto: CHRISTIE'S AUCTION HOUSE / AFP

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“A gente não sabia se tinha ganhado ou não”, disse Venkateswaran, descrevendo os enervantes momentos finais do leilão online para uma colagem de 5 mil imagens do artista conhecido como Beeple. “A gente ficou só atualizando a página”.

O leilão de 11 de março na Christie’s de Londres imediatamente transformou a arte de Beeple numa das peças mais caras já vendidas por artistas vivos, juntando-se a bem conhecida pintura de piscina de David Hockney e à icônica escultura de coelho de aço inoxidável de Jeff Koons.

Venkateswaran disse que ele e seu amigo e parceiro de negócios, Sundaresan, ambos na casa dos 30 anos, ainda estão processando sua compra histórica. Eles também tiveram de lidar com suspeitas externas de que a transação seria um esquema para inflar o valor da carteira de investimentos da dupla.

Isso porque Venkateswaran e Sundaresan investiram pesadamente numa nova forma de coleção digital com o complicado nome de tokens não fungíveis, ou NFTs, na sigla em inglês. Baseados na tecnologia de criptomoeda conhecida como blockchain, esses itens digitais funcionam como certificados exclusivos de autenticidade, tornando possível transformar arquivos digitais, geralmente tão fáceis de copiar, em coleções exclusivas - às vezes, no valor de dezenas de milhões de dólares.

A venda da obra de Beeple quebrou o recorde de NFT mais caro já vendido e deu início a uma conversa global sobre os NFTs, seu valor e se eles são uma novidade duradoura no cenário digital. Mas a impressionante soma envolvida ganhou as manchetes globais e algumas suspeitas de que poderia ter sido planejada para atrair mais publicidade para os NFTs, o que poderia aumentar o valor das outras aquisições da dupla.

O envolvimento da Christie’s, uma casa de leilões centenária, deve ser suficiente para tranquilizar os céticos, disse Venkateswaran numa ligação de sua casa no sul da Índia. “Acho que o maior problema aqui é que as pessoas pensaram que seria uma coisa impossível”.

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Certamente foi o que pensou o próprio Beeple, que na vida real é um artista digital chamado Mike Winkelmann. “Essa coisa toda de NFT não foi nada planejada, de jeito nenhum”, disse ele. Durante o leilão, o artista estava em sua sala de estar perto de Charleston, Carolina do Sul, cercado pela família e uma equipe de vídeo. Ele disse que parecia que uma “bomba tinha explodido na sala” quando os lances começaram a subir rapidamente. Justin Sun, outro licitante e investidor de criptomoedas, perdeu nos segundos finais, quando os lances excederam seu limite máximo.

O mercado de NFT já vinha decolando, com transações quadruplicando para 250 milhões de dólares no ano passado, de acordo com um relatório da NonFungible.com, um site que monitora o mercado. A venda de Beeple turbinou esse crescimento e ajudou a transformar os NFTs de algo de nicho, voltado principalmente para nerds de criptomoedas, para um novo tipo de ativo digital que atraiu a atenção do mundo da arte, da indústria musical, dos esportes e de especuladores.

Para não ficar para trás, a casa de leilões rival Sotheby’s está planejando sua própria venda de NFT, em colaboração com o artista digital Pak, num leilão no mês que vem. Winkelmann começou a ver as possibilidades de NFTs para artistas digitais em outubro, quando testou as águas com uma “amostra” inicial de seu trabalho.

“As pessoas realmente podem ter minha arte e colecioná-la e, você sabe, pagar um bom dinheiro”, disse ele numa entrevista esta semana. Foi depois de outra venda no ano passado que ele procurou um dos licitantes perdedores, Sundaresan, que usa o pseudônimo de Metakovan.

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O mundo da arte não era um ponto comum de conversa para Sundaresan e Venkateswaran quando eles se conheceram em 2013, época em que trabalhavam no The Hindu, um jornal diário de Chennai, Índia. Sundaresan era um consultor de tecnologia de 20 e poucos anos; Venkateswaran era jornalista.

Ambos eram de origem humilde. Sundaresan não tinha dinheiro para comprar um laptop quando estava aprendendo a programar, então andava por aí com um pen drive e pegava emprestado os laptops de seus amigos, disse Venkateswaran.

Mas, por volta de 2020, Sundaresan, que agora vive em Cingapura, tinha enriquecido com uma série de empreendimentos e investimentos em criptomoedas. Com o dinheiro de Sundaresan e o olho analítico de Venkateswaran, eles começaram a explorar os NFTs com um novo fundo chamado Metapurse.

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Sundaresan, que não quis ser entrevistado esta semana, criou a persona Metakovan como uma referência à sua afeição por mundos virtuais, conhecidos como “metaverso”. O nome significa “Rei do Meta” na língua tâmil.

O investidor de NFT's, Anand Venkateswaran, conhecido por seu pseudônimo online Twobadour, em Chennai, Índia. Foto: Family handout via AP

Venkateswaran, que mora em Chennai com a esposa e dois filhos, se autodenomina Twobadour. Numa postagem de blog na semana passada, a dupla revelou suas verdadeiras identidades e procurou dissipar um pouco do mistério sobre suas motivações.

“O objetivo era mostrar aos indianos e às pessoas não brancas que eles também podiam ser patrões, que a criptografia era um poder equalizador entre o Ocidente e o Resto e que o sul global estava crescendo”, escreveram eles.

Foi em dezembro que a dupla Metapurse fez seu primeiro grande investimento no Beeple, comprando 20 de suas obras por 2,2 milhões de dólares e presenteando o artista com 2% de seu novo fundo NFT, chamado B20s, projetado para permitir que grandes grupos de pessoas compartilhem a propriedade de uma obra de arte.

Foi o movimento precursor da histórica venda de março de Everydays: the First 5000 Days, um arquivo digital que combina trabalhos que Beeple havia criado todos os dias de maio de 2007 até o início deste ano. Muitos deles são abordagens grotesque e de desenho animado sobre o que estava acontecendo na política ou na cultura pop dos Estados Unidos. Os trabalhos também acompanham a ascensão de Beeple - de designer gráfico pouco conhecido a personalidade da internet com muitos seguidores no Instagram e projetos multimídia com estrelas pop como Nicki Minaj e Justin Bieber.

“Se você olhar para cada imagem pelo valor de face, obviamente nem todas elas vão resistir ao teste do tempo”, disse Venkateswaran. “Nem todas as cinco mil são obras-primas. A ideia nunca foi essa. Nem tudo que Beeple faz é ouro. Não o idolatramos. A ideia não é essa. O importante é a narrativa combinada do que ele representa”.

A compra chocou os mundos da arte e das finanças, mas de certa forma foi bastante convencional, disse a advogada de arte em Nova York Leila Amineddoleh. “Muito no mercado de arte é poder dizer: ‘tenho uma coisa única e rara e eu a possuo, olhem para mim! Nesse caso, não é assim tão diferente”, disse ela. “Todo o valor de um NFT é poder dizer que este é o original. Você está comprando o direito de se gabar e dizer: ‘Eu possuo o token’. Mas, na verdade, qualquer pessoa pode acessar a arte”.

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Amineddoleh disse que a tecnologia blockchain que sustenta os NFTs e outros mercados de criptomoedas também fornece um livro-razão transparente para registrar as transações de arte. Mas, para os céticos do mundo amplamente desregulamentado da criptomoeda, a venda levanta uma outra questão.

A Christie’s se recusou a comentar os detalhes da estrutura financeira da venda, exceto para dizer que o valor total foi pago numa criptomoeda conhecida como Ether Define, marcando a primeira vez que a Christie’s aceitou criptomoeda como pagamento.

“Obviamente há um rastreio de dinheiro e a Christie’s tinha um conjunto de trocas com as quais estava disposta a trabalhar, as quais examinou e aprovou”, disse Venkateswaran. “E essas trocas foram usadas para fazer o pagamento. Então, a Christie’s tem todas as informações”.

As trocas de criptomoedas podem estar sujeitas a um comportamento manipulador, de acordo com uma pesquisa de Friedhelm Victor, da Universidade Técnica de Berlim. Mas isso normalmente envolve investidores que compram e vendem os mesmos ativos repetidas vezes para criar uma falsa sensação de grande atividade comercial.

Essas idas e vindas ainda não se tornaram comuns com os NFTs, em parte porque eles normalmente implicam taxas mais altas, disse Victor. “Mas especulações malucas não são atípicas”, disse ele sobre a venda de Beeple. “São uma estratégia realmente inteligente para obter um pouco mais de atenção para todo esse espaço”.

E isso definitivamente aconteceu. Mas Venkateswaran disse que a atenção não significa que ele e Sundaresan estão tendo um grande lucro com os tokens. “A conta não fecha”, disse ele.

Tradução de Renato Prelorentzou

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