Com Jean Renoir, no caminho das Índias

O Rio Sagrado é um marco do grande diretor, uma obra de aprendizado humano e artístico, com rigorosa utilização da cor pelo filho do pintor impressionista Auguste

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Como deixa claro o título, o caminho das Índias que passa pelas locadoras não tem nada a ver com a nova novela de Glória Perez - que vai bem de público e mal de crítica, uma tradição da autora que seu novo texto não está ajudando a mudar (e isso apesar da estonteante beleza de Juliana Paes como indiana). O caminho das Índias refere-se a uma série de lançamentos de DVD, o mais importante dos quais é O Rio Sagrado, de Jean Renoir, de 1950, obra fundamental não apenas do autor, mas do próprio cinema indiano, que tem um antes e depois da rodagem deste filme, o primeiro feito em cores no país (e o primeiro colorido do próprio filho do pintor Auguste Renoir). Há um momento de O Rio que condensa, em poucos minutos, tudo o que Renoir quer dizer sobre a Índia que ele descobriu (e revela). É a sesta, que ele filma para expressar na tela a inércia dos corpos, mais do que o sonho. Mas antes talvez seja bom situar o filme na obra do diretor. Nos anos 40, como outros cineastas franceses, Renoir abandona a França ocupada pelos nazistas e vai desenvolver uma carreira em Hollywood. No final da guerra, ele está num impasse. O estúdio - a RKO - não se interessa por seus projetos, após o fracasso de público de A Mulher Desejada e a empresa produtora que Renoir tenta criar é fechada antes mesmo de funcionar, por falta de crédito bancário - segundo se especula hoje, em represália às ligações do artista com a esquerda europeia. Em 1946, Renoir comprou os direitos do romance The River, da autora inglesa Rumer Godden, que também escreveu Narciso Negro, que deu origem a outro prestigiado filme (de Michael Powell e Emeric Pressburger). Renoir convocou a própria autora para escrever o roteiro, e Rumer disse mais tarde que ele a fez escrever visualmente, adaptando as falas e descrições a uma escala de planos - geral, médio, close-up. Embora definido como o filme indiano de Renoir, O Rio é uma produção norte-americana (de Kenneth Mcdowney, um especialista no comércio de flores, numa rara incursão pelo cinema). Para o diretor, a descoberta da Índia implicou um duplo aprendizado, humano e artístico. O hinduísmo seduziu-o porque, como Renoir descobriu, nele não se sabe onde termina a divindade e começa o humano. Para um autor que esgotara o chamado realismo exterior, social, e buscava um realismo mais interno, da pessoa humana, a Índia foi uma revelação - seria, mais tarde, para outro europeu em busca de renovação, Roberto Rossellini, que fechou a mesma década fazendo Índia, em 1958. O filme vê o mundo do ângulo da varanda de uma casa colonial, pelos olhos de uma filha de europeus - de que outra maneira Renoir poderia assumir o desafio de filmar um país imenso (e desconhecido)? Existem a casa, a varanda, e um pouco distante a pequena casa, onde habitam os criados. Três mulheres, as duas filhas e uma mestiça, todas perturbadas pela chegada de um estranho. Harriet é a narradora. É pelos olhos dela que Renoir filma a ?sua? Índia. A cena da sesta é decisiva. Harriet acaba de ter uma conversa com a mãe, que a alerta para as mudanças em seu corpo, para que ela possa procriar. Harriet se rebela - "Odeio esse corpo!" Ela também recusa o pedido do irmão, para que jogue com ele. "Não vou jogar nunca!" A casa toda parece parar no tempo, para que a família durma. Só Harriet e o irmão parecem fugir. Ela, embora tente negar seu corpo, se distrai com o estrangeiro que desperta seu desejo. A distração é fatal. Ela não alerta para a cobra, que vai causar uma vítima. O rio vira uma metáfora da Índia, mas a sesta, com essa rendição dos corpos e o movimento da vida para a morte, superpõe-se ao próprio rio. Toda a Índia, e o hinduísmo, estão ali representados. Tudo o mais que se possa dizer sobre O Rio vira anedótico - e o filme é o contrário disso. Os problemas de produção, as doenças, as flores artificiais que Renoir plantou nos jardins e o verde dos gramados que ele pintou com tinta. No limite, o realismo ?interior? de O Rio alimenta-se de uma curiosa utilização do artifício cromático. Serviço O Rio Sagrado (Le Fleuve/The River). EUA, 1951. Direção de Jean Renoir. Cor, 89 min. Silver Screen, R$ 39,90

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