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Com cerca de 150 obras de excelente qualidade, mostra revê todas as fases de Picasso

Exposição apresenta toda a produção do artista em oito décadas

Por Olívio Tavares de Araújo
Atualização:

Das cerca de 150 obras que compõem a atual exposição de Picasso no Instituto Tomie Ohtake, o público brasileiro conhece cinco ou seis, através de reproduções em catálogos e livros internacionais. Poderia ser um péssimo sinal, já que são frequentes as exposições de artistas ilustres mandadas para países periféricos contendo produção secundária e apenas alguns highlights a título de contrapeso. Estamos tão acostumados que já nem nos animamos a ir vê-las. Essa deve ser uma das explicações para o fato de que, pelo menos por enquanto, a exposição Picasso: Mão Erudita, Olho Selvagem tem menos filas que a de Frida Kahlo, há seis meses. E também, claro, porque Frida se tornou uma pop star graças ao cinema, ao marketing, à fabricação da grife, ao passo que a glória de Picasso é mais antiga, mais firmada, mais séria. Já não causa a mesma curiosidade nem frisson. Assustador.

No entanto, eis uma exposição a ser vista. Vindas do Museu Picasso de Paris – formado com doações do mestre e da família –, as obras, independentemente do tamanho e fama, são de excelente qualidade, e fornecem uma adequadíssima visão das questões a ele pertinentes. Começando pela mão maravilhosa, pela espantosa dotação natural que lhe possibilitou, aos 15 anos, concluir em algumas horas o exame de admissão à Academia de San Fernando, no qual os outros levavam dias. Saltam aos olhos, aqui, a facilidade, o escandaloso virtuosismo, o acerto com que consegue fazer qualquer coisa, do mais mínimo e lírico rabisco à mais trágica e imponente pintura ou escultura, em qualquer momento da trajetória, em qualquer um dos caleidoscópicos estilos que descobriu/inventou. São muitos, em incríveis oito décadas de produção. Diferem tanto entre si como se fossem de autores diferentes: fase azul, fase rosa, cubismo, neoclassicismo, expressionismo, etc. Com toda certeza, coerência não é uma característica do mestre. Caracterizam-no, pelo contrário, e constituem bases de sua glória, a originalidade contundente e a variedade dentro da inteireza.

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Nada modesto, são de Picasso as frases “Aos 11 anos eu podia desenhar como Rafael” e “Eu não procuro; acho”. Como a primeira não constitui um disparate, vamo-nos deter na segunda, que talvez já não resista a uma visão mais contemporânea do processo criador. A verdade é que inspiração (se é que existe) não fica rondando na cabeça do artista à espera de uma ordem divina ou do acaso; deve ser convocada, agenciada. Até a própria total facilidade natural, biológica, como a de Picasso, necessita de ideias e de atos de vontade para se materializar em formas inteligíveis. Acha-se o que se estava procurando, como na bela explicação de Newton sobre como descobriu a lei da gravidade: “Pensando sempre nela”. Foi pensando sempre em enfrentar novas questões expressivas, de material e de forma que Picasso inventou tanto. A obra deixa evidente que há, a cada etapa, o desenvolvimento de um projeto, mesmo que não teorizado. Dialoga com o meio e o momento, reagindo a expectativas deles, e responde de maneira até mais evidente a movimentos e necessidades interiores do artista. Parece falta de profundidade, mas não é, afirmar que Picasso mudava de estilo quando mudava de mulher.

Nesta exposição pequena, todas as fases estão condignamente representadas – ainda que pudéssemos ver com muito gosto mais exemplos do cubismo ou da fase azul, lá no começo da carreira, com seu engajamento social. Destaca-se a fase neoclássica, o grande, inequívoco atestado de proficiência a provar que Picasso – como outros mestres do século 20 – ‘sabia desenhar’. Durante muito tempo, os menos informados ou de menos boa vontade atribuíam as invenções do modernismo à deficiência técnica. Aqui, O Baile na Aldeia, uma enorme tela de 1922, faz pendant com muito pequenas pinturas da mais alta, refinada e delicada poesia: Duas Mulheres Correndo na Areia, Família à Beira-Mar. Mais não houvesse, esses três trabalhos valeriam uma visita. Mas há. Até meio escondida, num canto, está uma Mulher Chorando (1937) em que a figura feminina é destroçada. Como pode essa gravura retratando Dora Maar (a mulher do momento) concentrar tanto horror e desespero, e com a mesma eficácia, quanto, digamos, todo o monumental Retábulo de Isenheim, de Mathias Grünewald, no fim da Idade Média?

PICASSO: MÃO ERUDITA, OLHO SELVAGEM Instituto Tomie Ohtake. Av. Faria Lima, 201, 2245-1900. De 3ª a dom., 11h/ 20h. R$ 12. Até 14/8.

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