Coleção de moda faz o elogio da diferença

Série mostra como estilistas do Brasil lutam para afirmar identidade visual

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

No ano passado, a editora Cosac Naify, numa iniciativa pioneira, lançou de uma só vez cinco volumes dedicados aos novos estilistas, reunidos numa caixa que é o embrião de um ambicioso projeto: mapear a moda contemporânea brasileira por meio da trajetória de seus criadores. Os primeiros contemplados foram Alexandre Herchcovitch, Glória Coelho, Lino Villaventura, Ronaldo Fraga e Walter Rodrigues. Dando prosseguimento à Coleção Moda Brasileira, a editora lança cinco novos volumes projetados para traduzir visualmente as criações dos estilistas André Lima, Clô Orozco, Lenny Niemeyer, Marcelo Sommer e Reinaldo Lourenço. Essa segunda caixa (R$ 49 cada volume), com mil imagens de 70 coleções dos cinco profissionais, avança não só no mapeamento dos criadores como na qualidade dos textos da coleção, organizada por João Rodolfo Queiroz e Reinaldo Botelho com projeto gráfico de Elaine Ramos e coordenação editorial de Mariana Lanari. De certa maneira, os cinco estilistas selecionados para a segunda caixa contestam a máxima filosófica de que a moda, hoje, é a grande culpada por uniformizar o consumidor, dissolvendo sua identidade. O sexto volume da série, dedicado a um estilista que veio do Belém, André Lima, mostra justamente um criador que faz o elogio da diversidade, embora seja com freqüência reduzido ao estereótipo do caboclo que descobriu o mundo, como observa, arguto, o jornalista Eduardo Logullo, autor do saboroso perfil do paraense. Aos 38 anos, Lima é uma antena biruta que capta tudo, cruzando ilustrações de Erté com os moletons de Norma Kamali, roupas de índias panamenhas com laminados de Paco Rabanne e ficção futurista, tudo isso com talento antropofágico, almodovariano. Logullo, em seu texto, vai buscar a origem desse hibridismo maluco na infância do estilista, criado num casarão típico do Norte, cheio de mulheres barulhentas e orgulhosas de seu jeito pessoal de vestir. O reconhecimento da alteridade é meta tão evidente na segunda caixa da coleção que a presença da estilista Clô Orozco ao lado de André Lima bastaria para justificar essa intenção de reunir antípodas. Orozco, designer e empresária, fundou uma das grifes mais tradicionais do País, a Huis Clos, que vai completar três décadas de existência. Suas roupas discretas se caracterizam por cores sóbrias, tons refinados e equilíbrio minimalista. Resumindo: Orozco está mais para Bergman e André Lima, mais para Fellini. O volume seguinte, dedicado à santista Lenny Niemeyer, não despreza a formação da designer que, em sua juventude, nos anos 1970, viu surgir a lycra e usou sua imaginação para criar, na década seguinte, uma moda de praia até hoje reconhecida pela variada oferta de cores e acessórios. Ela montou sua primeira oficina na garagem de seu apartamento na Lagoa, Rio, até organizar seu primeiro desfile há pouco mais de 12 anos. A intuição aliada a um olhar generoso para o streetwear, aquela moda que surge das ruas, é a marca de pelo menos dois dos estilistas dessa segunda caixa, o já citado André Lima e o paulistano Marcelo Sommer, da mesma geração - o primeiro nasceu em 1970 e o segundo, três anos antes. Há dez anos havia algo de circense na escolha das cores de Sommer, espécie de intérprete das culturas marginais hoje absorvidas pelo circuito do consumo. Bem diferente do clássico Reinaldo Lourenço, a quem é dedicado o último volume da coleção. MARCELO SOMMER: Aos 42 anos, o estilista paulistano é um mestre da collage pós-cubista, rendendo-se a uma retromania engraçada que não dispensa referências aos brinquedos de infância, aos objetos consagrados pela cultura kitsch e figurinos de inspiração circense, tudo isso iluminado com cores despudoradas. Alegre, irreverente, seu estilo já atravessou as paredes do Carandiru, onde organizou um desfile de travestis em 1999. Foi nesse ano que apresentou roupas infláveis e criou fantasias para Ivete Sangalo. Há cinco anos fez uma parceria com costureiras da Rocinha (Coopa-Roca) e vestiu Gilberto Gil para receber o Grammy, sem desprezar sua inclinação para a estética do brechó. Faz basicamente roupas para jovens - daí seu trabalho para a grife Cavalera desde 2007. REINALDO LOURENÇO: O estilista de 46 anos, nascido em Presidente Prudente, interior de São Paulo, nunca foi conformista. Começou sua precoce carreira vendendo lencinhos de cambraia pintados à mão para os colegas de escola, cresceu fazendo produção de moda para revistas especializadas, casou-se com a estilista Glória Coelho há 24 anos e suas referências incluem tanto a arte surrealista de Dalí como os figurinos futuristas de Mad Max, passando por um cruzamento da roupas vitorianas com geometria africana, num inesperado diálogo transcultural. Embora sua rebeldia tenha sido domada há tempos, as roupas ainda conservam algo da cultura punk, mas com muito refinamento. O estilista é um dos profissionais brasileiros mais empenhados em descobrir novas técnicas e materiais. Ele busca no contraste o mote para criar coleções que transitam entre a sobriedade clássica e a rebeldia das culturas marginais, num jogo em que se submete à tradição para melhor desconstruir o passado. CLÔ OROZCO: Nossa Chanel. Paulistana, a estilista de 58 anos, criadora da Huis Clos, fez pelo tailleur o que Reverón fez pela pintura nos trópicos, limpando a superfície da tela dos artifícios. A limpeza formal e a elegância de suas roupas resultam de seu olhar atento para as artes visuais. A exemplo de Chanel, tem fixação por camisas brancas e inveja roupas masculinas, que adapta bem às suas criações. ANDRÉ LIMA: Enfant terrible da moda brasileira, é o correspondente cromático de Beatriz Milhazes na estamparia. Vestidos vaporosos, de tecidos leves, multicoloridos, lembram os trajes das caboclas nortistas misturados a uma visão nostálgica dos longos tropicalistas de Mila Moreira nos desfiles da Rhodia dos anos 1960, quando o estilista, de 38 anos, nem havia nascido. Sua última loucura é transformar samambaias em pregueados de tecido brilhante, particularmente atento aos volumes e à ampliação de sua cartela de cores, hoje um pouco mais discretas, como suas estampas. LENNY NIEMEYER: Nos anos 1970, ela trabalhava num escritório de arquitetura sem muita convicção. Com a mudança para o Rio de Janeiro, tudo mudou. A estilista usou sua experiência como arquiteta para desmontar um biquíni e desenhar uma peça totalmente nova num momento em que a lycra era novidade no Brasil (os biquínis, então, eram feitos de Helanca ou algodão). Nos anos 1980, ela já fornecia seus modelos para lojas como a Fiorucci e Richard?s, até criar, com certo constrangimento, a marca Lenny. Sua estamparia é invariavelmente multiculturalista, incorporando desde acessórios das roupas africanas (miçangas, chifres e ossos) às cores das paisagens tropicais de Taunay. A estilista, aos 56 anos, comanda 18 lojas no País e uma fábrica no Rio, além de vender para vários países das Américas e da Europa.

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