Clint Eastwood acerta velhas contas

Com Gran Torino, ele mostra que até os racistas têm coração e assina um dos filmes mais emocionantes de sua carreira

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Há quase 30 anos, em Bronco Billy, Clint Eastwood já tentara seu primeiro acerto de contas com a figura mítica de Dirty Harry, o tira de São Francisco que ele interpretou cinco vezes na tela (leia texto nesta pág.) e que o levou a se transformar num machão odiado pelas feministas, que nunca perdoaram o herói por seu chauvinismo. Bronco Billy, que Clint interpretou e dirigiu em 1980, passa-se num circo itinerante, onde um caubói decadente acolhe desertores do Vietnã e a lona do picadeiro é uma bandeira remendada dos EUA. Bronco Billy nunca é lembrado como um dos grandes filmes de Clint, mas é um divisor de águas na sua carreira, marcando o ponto - de não retorno - em que o reacionário começa a se fazer humanista. O ciclo completa-se em Gran Torino, que estreia hoje. Feito a toque de caixa (três semanas) e campeão de rendas da carreira do diretor - US$ 120 milhões somente nos EUA -, Gran Torino, sob certos aspectos, assemelha-se a um óvni. Escrito pelo novato Nick Sghenck, não deixa de propor uma síntese ou confronto de Clint com sua imagem. Em vários momentos, Clint empunha uma arma imaginária e em outros ele não cessa de limpar, e preparar, o rifle que substitui a Magnum 44 de Dirty Harry. Mas o velho herói não apenas fecha o ciclo sacrificial da obra recente do ator e diretor (Cowboys do Espaço, Sobre Meninos e Lobos, Menina de Ouro), como marca um avanço considerável na abertura para o outro que já caracterizava Cartas de Iwo Jima, segunda parte do díptico iniciada por A Conquista da Honra. Somando tudo, o que Clint está querendo dizer em seu novo filme é que, sim, existe esperança. A América de George W. Bush é uma página que está sendo virada e até velhos reacionários como o Walt Kowalski de Gran Torino conseguem revelar sua humanidade. Mais uma história de segunda chance, dirá o espectador. O tema, com o retorno ao lar, é um dos mais tradicionais de Hollywood e Clint, como assinalou Gilles Jacob, diretor-geral do Festival de Cannes, durante a cerimônia privada em que foi atribuída ao astro uma Palma de Ouro especial, é hoje justamente o artista que faz a ponte entre a tradição de Hollywood e a modernidade. Na abertura de Gran Torino, Walt está enterrando a mulher, visivelmente irritado com os filhos e netos e até com o padre que faz um sermão que ao herói parece piegas. Walt põe os filhos a correr, isola-se, mas não tanto. Ex-montador na indústria automobilística, ele guarda na garagem, como relíquia, o Gran Torino do título, carro cobiçado pela neta. Ao lado, habitam os vizinhos que ele chama de ?chinas?, mas na realidade são hmongs, um povo nômade da Ásia, que apoiou os norte-americanos no Vietnã e, agora, tenta se estabelecer numa América que lhes é hostil. Walt é racista, odeia os ?chinas?, mas, ao estabelecer vínculo com o garoto (Thao) e sua irmã, vai descobrir que uma família de adoção pode ser mais importante do que a outra, de sangue. Walt será o referencial masculino de Thao e será para o garoto que ele vai fazer a confissão sobre seus pecados de guerra, e não para o padre que o persegue, tentando cumprir a promessa que lhe extorquiu a mulher do herói, antes de morrer. O carro evoca outros tempos dos EUA e, por isso, é uma relíquia de que todos, até a gangue dos hmongs, querem se apossar. Clint não acerta só suas contas com Dirty Harry. Acerta com o próprio cinema, seu meio de expressão. Embora tenha surgido na TV norte-americana, numa série de western (Rawhide), ele só ficou famoso na Itália, com os spaghetti westerns de Sergio Leone, antes que seu outro mestre, Don Siegel, o transformasse em Dirty Harry. O solitário Walt agora descobre o valor da vida em comunidade. O padre é peça-chave, mesmo que Clint mais brigue do que comungue com ele. Tudo isso remete ao grande clássico, John Ford. Clint, nascido em 1930, precisou chegar quase aos 80 anos para se tornar, enfim, fordiano. NÚMEROS 33.ºfilme em 38 anos de carreira como diretor 3 semanas de filmagem, a mais curta da carreira de Clint 120 milhões de dólares de bilheteria, seu maior sucesso de público nos EUA O HOMEM DA MAGNUM 44, CINCO VEZES ÍCONE DA VIOLÊNCIA NA TELA DIRTY HARRY: O tira durão de São Francisco surgiu pela primeira vez em Perseguidor Implacável, de Don Siegel, em 1972. Depois disso, viveu mais quatro vezes na tela (Magnum 44, Sem Medo da Morte, Impacto Fulminante, que o próprio Clint Eastwood dirigiu, e Dirty Harry na Lista Negra). Com a pistola na mão e os acordes de Lalo Schiffrin ou Henry Fielding de fundo, Harry Callahan, o Dirty Harry, virou ícone da violência na tela. Para os críticos, um reacionário. Para as feministas, um chauvinista. Foram necessários muitos filmes de recorte humanista para que Clint chegasse, enfim, ao acerto de contas com seu personagem.

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