Ciranda de pedra, ódio e medo

Leia início do posfácio inédito de Silviano Santiago para nova edição do livro

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Por Redação
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Depois de se afirmar como mestre na arte do conto na década de 1940, Lygia Fagundes Telles publica seu primeiro romance em 1954. Ciranda de Pedra chega às livrarias num ano particularmente feliz para a cidade de São Paulo e, graças aos próprios méritos, arranca palavras entusiásticas e elogiosas da ranzinza crítica literária nacional. O avesso na "descrição de uma família", para retomar expressão do romance, contraponteava de modo crítico as atividades culturais que enobreciam as festividades cívicas em torno do quarto centenário da capital do Estado. A ocasião festiva exigia do escritor textos longos e complexos, de risco. Ciranda de Pedra surge no momento em que o ficcionista brasileiro não se contenta com os efeitos dramáticos manipulados pelo saber sociológico. Na análise das relações humanas, investia na vertigem do corte cirúrgico psicológico. Com o correr das décadas, Ciranda de Pedra foi ganhando novas e inúmeras edições. Chega ao novo milênio como um clássico do século 20. O sucesso, que o persegue desde o berço, levou por duas vezes a Rede Globo a transformá-lo em telenovela de repercussão nacional - em 1981 e em 2008. A epígrafe do romance - tomada de empréstimo aos Sonetos a Orfeu, do poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) - serve como chave de entrada para a nova leitura. Nos dois versos de Rilke, agiganta-se a "boca da fonte" que, generosa e inesgotavelmente, está sempre a dizer a mesma água. Naquela coleção de poemas como no soneto invocado, saltam à vista dois temas caros a Rilke - o do devir outro e o da superação dos desdobramentos identitários. Abordemos a metáfora contida na epígrafe. A terra se metamorfoseia em água e escorre pelo aqueduto até chegar à boca da fonte. Pela abertura, a terra concede ao ser humano uma dádiva vital, sempre a mesma e sempre pura. Terminado o périplo, a água retorna à terra que a tinha gerado, sobrelevando a diferença originária. "E a terra nada mais faz / do que falar a si mesma" - ela é boca e diz e é orelha e escuta a própria voz. A poesia de Rilke aponta para a separação e o distanciamento, a fim de que se cumpra um intrincado sistema universal de relações. Em suas metamorfoses, o ser humano - se não se deixar assombrar pela morte - açambarca uma visão congruente e totalitária da vida no planeta Terra, constituída por analogias inéditas, ou por "correspondências", para se valer do poema de Charles Baudelaire: "Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam." Ele enxerga o Todo em sua multiplicidade, sem limitações - em aberto, portanto, como quer Rilke nos sonetos e nas Elegias de Duíno. Ao final de Ciranda de Pedra, Virgínia, "que sentia um gozo obscuro em ir passando de mão em mão", descobre que não pode se liberar das sucessivas faces modeladas pelas experiências sentimentais. Tampouco pode apagá-las com "borracha", isso "porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes, havia neles uma relação indestrutível". Fios e elos, relações, compõem o personagem. "Mais importante do que nascer é ressuscitar." Nada do que é humano começa pelo zero, tudo recomeça. Como se lê em outra passagem do romance: "O essencial era desvencilhar-se da face antiga com a naturalidade da lagarta na metamorfose." A vida sentimental de Virgínia - descobre o leitor - se passa "numa sequência sem começo nem fim". Como em Rilke, o ser humano tem de viver em aberto, embora a todo o momento o queiram fechar - isto é, podar suas asas de anjo - pela obsessão da morte. Não é, pois, estranho que o narrador de Ciranda de Pedra comece por conceber a menina Virgínia e demais personagens do romance em linguagem alucinatória, para deixar a trama ir retirando a ela e a eles lá de dentro até o final da narrativa. Na página inicial, o mundo animal - paralelo ao mundo humano - se enreda e interage com o processo de crescimento sentimental de Virgínia e dos personagens que lhe são queridos, dando origem a um amálgama estilístico original, que é marca registrada da ficcionista paulista. Ao identificar Virgínia ao animal (no caso, a uma formiga), o discurso romanesco a transporta a outro lugar, reflexivo no caso, e a diferente/semelhante sistema de circulação. A formiga é o duplo de Virgínia, diferente dela porque não pressente a morte. Companheira na crise e anjo zeloso. Ao se abrir à experiência do inseto, Virgínia afirma pelo mal a personalidade desnorteada, ainda em formação. O amálgama estilístico criado por Lygia vai superar, no entanto, a separação e o distanciamento entre o mundo humano e o animal, enlaçando-os. O desvio pelo lugar e a fragilidade do inseto descortina o potencial de vida. "Começa hoje mesmo a vida que te resta." Torna-se capaz de enfrentar a teimosia hipócrita de Natércio, que a renegou e a distanciou dos seus. Se recuperada pelo Falso Pai (Natércio), já sabe que ele existirá na narrativa para ser também superado. Com precisão, o narrador de Ciranda de Pedra aponta para os familiares separados, cujo sentido de honra aniquila Virgínia: "A estranha ciranda! Eram solidários e no entanto se traíam. Eram amigos e contudo se detestavam." Competia a Virgínia renegar o medo e o ódio inculcados pela estranha ciranda, fazendo-os submergir na alucinação e no delírio, onde o humano e o animal comungam o mesmo cotidiano. A vida de Virgínia começa - se se puder falar de começo em romance de Lygia - por linguagem alucinatória. O apego do narrador à escrita do delírio é apenas aparentemente irracional, já que é ela que propicia que se abram as cortinas cristãs (estas, sim, irracionais) do casarão paulista. No palco, o antagonismo familiar. A mãe (Laura) e a filha caçula (Virgínia) foram excluídas pelo patriarca (Natércio) e separadas das irmãs (Otávia e Bruna). Em causa, a traição de Laura com Daniel, o médico da família e pai de Virgínia. A primeira separação será dissolvida na primeira parte do romance. Virgínia retorna ao casarão patriarcal e passa a conviver com Natércio, as duas irmãs e Frau Herta. A morte de Laura e o subsequente suicídio do amante garantem o retorno definitivo da caçula. A força dominante na casa de Natércio é a Bíblia Sagrada e as leis que excluem e punem a mulher adúltera e o fruto de seu ventre. Descobre Virgínia, ainda confiante: "Abandonei minha mãe no momento em que ela mais precisava de mim. Mas lá tudo era feio, pobre, e eu queria o conforto da casa de meu pai." Porta-voz bíblico, fala Bruna em contraponto preocupante: "Nossa mãe está pagando um erro terrível, será que você não percebe? Abandonou o marido, as filhas, abandonou tudo e foi viver com outro homem. Esqueceu-se dos seus deveres, enxovalhou a honra da família, caiu em pecado mortal!" Virgínia ainda é criança, não tinha acesso ao sentido do verbo enxovalhar. O traslado de Virgínia para o casarão, bem como a morte subsequente de Laura e de Daniel, vai transformar a filha excluída em bastarda. Sem o saber até então, ela era o agente da separação na família e do distanciamento na discórdia. A bastarda se encaminha para a condição de intrusa na casa de Natércio. Ela foi e volta a ser o pivô do antagonismo: "Levei a inquietação para a casa onde pensei ser bem recebida, lá fui atormentar Natércio com minha presença. Ele queria esquecer e eu não deixava, eu com os olhos do outro [DE DANIEL], com o andar do outro, lembrando a traição, ressuscitando tudo." Ciranda de Pedra não tem começo, mas Virgínia nele nasce para ser a assassina da formiga. Está em concordância com o clima da casa materna. Em crise de afeto, a menina sobe as escadas de casa e se tranca no quarto. Vê uma formiga que também sobe, então pelo batente da porta. Ao descobrir e acompanhar o andar arriscado da nova companheira, ela tenta salvar a ela - e a si da fresta perigosa. Da morte que o inseto não pressente. A vida descuidada da formiga perde o sentido que lhe é próprio e passa a se referir ao instante tenso e dolorido por que passa Virgínia. Esta enxerga as próprias unhas, foram roídas até a carne. Compara suas mãos às delicadas da irmã. A inveja apressa o desejo de morte. Recusa o duplo que a desvela. Esmaga a formiga. No campo dos afetos e por efeito de eco, é introduzido na narrativa o jovem Conrado. Na verdade, ele é o alvo do olhar amoroso de Virgínia, e o será até as páginas derradeiras do romance, quando se revelará "um São Francisco de Assis burguês". Ao esmagar a formiga, a menina se lembra de palavras do jovem. Morta, a formiga ressuscita em sua imaginação para instaurar um primeiro abalo no ser na casa onde se pressente a morte da mãe. "Pensava em Conrado a lhe explicar que os bichos são como gente, têm alma de gente e que matar um bichinho era o mesmo que matar uma pessoa." Assegurada a interação sentimental entre os dois mundos, o assassinato num plano repercute no outro para despertar - no presente caso um efeito catequizador. "Se você for má" - é ainda Conrado quem fala - "e começar a matar só por gosto, na outra vida você será bicho também, mas um destes bichos horríveis, cobra, rato, aranha..." É preferível virar borboleta - um inseto do bem. Acrescenta o texto: "Mas quem ia ser borboleta decerto era Otávia, que era linda." Pela inveja da irmã e o ressentimento, Virgínia se distancia da fresta perigosa. Reafirma a vida na morte. [DE DANIEL]Mas não se esgota aí o filão esclarecedor da narrativa. Laura, a mãe infiel, surge no romance em decorrência de outra lembrança de Virgínia. Ainda os insetos - a aranha e a mariposa, agora a desempenharem papel importante na linguagem alucinatória. Carreados pelos bichinhos, sobressaem na trama o risco de continuar a viver e a consciência da morte. Virgínia se lembra de ter visto uma mariposa imprevidente, enredada numa teia de aranha. O primeiro impulso é o de salvar a ela - e a seu duplo, a mãe: "Fuja depressa, fuja!" Mas não intervém. Leiamos o texto: "Mas a mariposa se deixava envolver, sem nenhuma resistência, no viscoso tecido cinzento que a aranha ia acumulando em torno das suas asas. Assim via a mãe, enleada em fios que lhe tapavam os ouvidos, os olhos, a boca." É ainda por efeito de eco que entra na narrativa o afeto sentido pelo par masculino, antes Conrado e agora o amante: "Apenas uma pessoa conseguia penetrar no emaranhado: Daniel." No universo delirante da filha, a morte da mãe vai ganhar corpo na comparação com outro inseto, o besouro, comparação que reaparecerá por todo o restante do romance. "E besouro que cai de costas não se levanta nunca mais." Coube a Daniel libertar a experiência da morte da amante/mãe de seus cerceamentos terrenos. Ele a libera no elogio de um devir livre e eterno para o ser humano. Leiamos as palavras que dirige à filha: "Dentro desse corpo, Virgínia, há como que um sopro, isso é o que a gente é de verdade. E isso não morre nunca. Com a morte, esse sopro se liberta, vai-se embora varando as esferas todas, completamente livre, tão livre..." Entre o assassinato da formiga e a mariposa que se enreda sem resistência na teia de aranha, Virgínia segue sua vida convivendo com a imagem inexorável do besouro. A menina ricocheteia na morte da mãe e no suicídio do pai até o momento em que passa a viver sob o controle imperioso do distante Natércio, de Frau Herta e das irmãs por parte de mãe. Fala Bruna, sensata em suas palavras quase maternais: "Já está em tempo de você ficar sabendo certas coisas, não tem cabimento falar a vida inteira como uma criança, preste atenção..." A inclusão acarreta a perda da inocência. A narrativa passa a ressaltar outra imagem a dos anões, ou duendes, em ciranda pelo jardim. Silviano Santiago é escritor e ensaísta, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Uma Literatura nos Trópicos,Histórias Mal Contadas e O Cosmopolitismo do Pobre, entre outros

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