Cinema de verdade tem vez este ano

Há documentários belíssimos exibidos na programação deste 61.ª edição

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Por Luiz Carlos Merten e Cannes
Atualização:

É uma sensação bizarra para um espectador - um cinéfilo - brasileiro. Em Todas as Mulheres do Mundo, Domingos de Oliveira colocava um tema de Gabriel Fauré nas cenas em que Leila Diniz - a mulher que sintetizava todas as outras - olhava para a câmera. Raymond Depardon recorre ao mesmo tema de Fauré em A Vida Moderna, seu novo documentário, que integra a seleção de Un Certain Regard. O tema aparece quando o carro da produção percorre uma estrada invernal (toda a paisagem está coberta de neve), a caminho de uma daquelas fazendas no coração da França, cujos proprietários o grande diretor entrevista. É maravilhoso e, ao mesmo tempo inusitado, pois aquela estrada remete a uma atriz mítica - e a um filme também mítico - do cinema brasileiro. Existem belíssimos documentários em diferentes seções do 61º festival, e o de Depardon é um deles. O diretor foi ouvir os mesmos fazendeiros que já entrevistara num filme anterior. Muita coisa ocorreu na vida deles, e na obra do próprio Depardon, mas, no fundo, o que ele admite que queria fazer era fugir ao clichê de que essas populações interioranas são reacionárias e ponto final. A modernidade já chegou a estes aparentes bastiões do conservadorismo, e é disso que trata La Vie Moderne. As transformações também estão no centro do belíssimo documentário de Jia Zhang Ke 24 City, que integra a mostra competitiva, concorrendo à Palma de Ouro. Zhang Ke é hoje não apenas o maior diretor chinês, mas um dos maiores do mundo. Seu tema são as transformações ocorridas em seu país na passagem do comunismo para o capitalismo. Em Busca da Vida trabalha como ficção o mesmo universo - ao redor da construção da barragem das Três Gargantas - que Dong explora como documentário. Zhang Ke agora une as duas tendências. Os maiores filmes brasileiros do ano passado - Santiago, de João Moreira Salles, e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho - se construíam exatamente como 24 City, nas bordas do documentário e da ficção. Jia Zhang Ke volta-se para esta fábrica de armamentos que está sendo destruída para implantação de um moderno conjunto. Ele entrevista pessoas que ali viveram e reconstitui outros depoimentos por meio de atores, entre eles (ou elas) Joan Chen, que co-estrelou O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci. O sentimento proporcionado por 24 City produz uma estranha melancolia no espectador, e é isso que faz a (extrema) beleza do filme. Impossível não pensar no poema de Woodsworth que servia de epígrafe para Clamor do Sexo, de Elia Kazan. O esplendor na relva se foi para sempre, mas as pessoas o carregam como um suporte para a necessidade de seguir em frente. Jia Zhang Ke não é nostálgico da velha China comunista. Ele sabe perfeitamente o que significou aquele Gulag - e sabe, também, exatamente, em que país vive (e no qual seus filmes permanecem inéditos, apesar de sua consagração no exterior). As pessoas, homens e mulheres, perderam muito durante o comunismo, e perderam até muito do que haviam adquirido no comunismo, mas agora elas vivem todas as dificuldades de adaptação a um mundo que se transforma rapidamente demais. Há um sentimento permanente de perda nos sonhos que estas pessoas sonham realizar. A mulher que tinha vergonha dos pais operários (Joan Chen, num verdadeiro jogo de cena) agora quer trabalhar bastante para comprar para eles um apartamento de luxo em 24 City. Há um sentimento de tristeza, mas mesclado à euforia de que a transformação é inexorável. Nada volta atrás, como no poema de Woodsworth e Jia, afinal, pode ser mais crítico - pelo menos para efeito externo - do que a geração anterior do cinema chinês. Outro filme nas bordas da ficção e do documentário passou ontem na Quinzena dos Realizadores. É o português Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. Se você perguntar a jornalistas de Portugal, eles dirão que o público do país não tem muito orgulho de seu cinema e que as pessoas, em geral, preferem as megaproduções de Hollywood. O motivo mais fácil para isso é o forte experimentalismo do cinema português, seja por parte de um autor centenário, como Manoel de Oliveira, e de um jovem na casa dos 30 anos, como Gomes. O filme dele começou a surgir como ficção, mas aí faltou dinheiro e o filme parou. O diretor reassumiu-o como documentário, filmando em 16 milímetros, com uma equipe reduzida para diminuir ainda mais os custos. Ele filma numa das regiões mais atrasadas de Portugal, mas também uma daquelas que melhor conserva tradições religiosas e cultiva um tipo de música (country?) portuguesa, como a que no Brasil se define como brega, cheia de males de amor. A música é um fundo e, ao mesmo tempo, a real condutora da história, que trata de um filme dentro do filme. Lá pelas tantas, não são mais os personagens, que se constroem entre a ficção e o documentário, que estão em debate, mas o próprio filme, ameaçado de não existir por causa do que se aparenta a um defeito técnico na captação do som. O resultado é imenso - um filme sobre o cinema, sobre a vida, o mundo. Simples, totalmente distante de uma dramaturgia tradicional e, ao mesmo tempo, terrivelmente complexo. O cinema português, realmente, não cessa de surpreender. Depois de Oliveira, João Monteiro e Pedro Costa, existe agora Miguel Gomes para ser descoberto pelo público brasileiro - no Festival do Rio, na Mostra de São Paulo e, depois, quem sabe?, no circuito comercial.

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