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Cildo superstar

Com uma grande retrospectiva na Tate Modern, o artista Cildo Meireles, vencedor de dois prêmios internacionais em 2008, ganha documentário sobre sua obra

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Ele é o oposto do que se imagina um artista internacionalmente consagrado. Detesta circular entre socialites, não gosta de aparecer na mídia e mantém distância do circuito de galerias. No entanto, é hoje o nome mais discutido entre críticos e curadores internacionais, após receber no ano passado dois importantes prêmios - o Velázquez, concedido pelo Ministério da Cultura da Espanha, e o Ordway Prize, do New Museum de Nova York - e inaugurar sua grande retrospectiva no templo maior da arte contemporânea mundial, a Tate Modern de Londres. Como se não bastasse, Cildo Meireles encerra a mostra inglesa, na próxima semana, com a estreia (dia 9) de um documentário de longa-metragem sobre sua obra, Cildo, dirigido pelo cineasta Gustavo Moura e produzido pela Matizar Filmes dentro da série Retratos Contemporâneos da Arte. Com consultoria de Vanda Klabin, a série tem dois outros filmes, um sobre o artista Fernando Lemos, realizado em 2004, e outro, em produção, sobre Carlos Vergara, companheiro de geração de Meireles, que completou 60 anos no ano passado. O cineasta Gustavo Moura levou quatro anos para concluir o documentário, que só ficou pronto após a abertura da mostra da Tate. A razão é a de sempre: falta de dinheiro. O diretor teve de bancar do próprio bolso viagens ao Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, em Minas Gerais, para filmar a instalação Desvio para o Vermelho (concebida em 1967 e realizada em 1984, foto que abre esta página), e ao Museu Vale de Vila Velha, onde se encontra a instalação Babel (2001-2006), comentário ruidoso dos mecanismos de transculturação. Felizmente, quando a retrospectiva londrina se abriu, em outubro do ano passado, o financiamento saiu e Moura conseguiu registrar a mostra e a reação dos espectadores ingleses. Eles deixaram de lado a habitual discrição e paravam Cildo Meireles na rua para felicitá-lo pela mostra, como comprovam as imagens do documentário. O filme de Moura, de certa maneira, completa outro documentário que o cineasta inglês Gerald Fox realizou sobre o pioneiro da instalação no Brasil. Com 50 minutos de duração, ele foi produzido no ano passado pela Tate Media e exibido na abertura da mostra em outubro passado. Fox teve como missão acompanhar a viagem de Cildo à capital inglesa. Já Moura teve como meta ralentar a dinâmica do cinema e se adaptar ao tempo nada internético do artista, que, no interior de seu ateliê de Botafogo, volta ao passado para contar fatos marcantes de sua vida - e como esses acabaram determinando o rumo de alguns de seus trabalhos mais desafiadores. Entre essas instalações, a peça-chave da obra do artista talvez seja mesmo Missão/Missões (Como Construir Catedrais), de 1987, comentário provocativo sobre as sete missões fundadas pelos jesuítas no Sul do Brasil, Paraguai e Argentina, entre 1610 e 1767. Nessa obra, 600 mil moedas são ligadas a 2 mil ossos por uma coluna de hóstias que desmonta o estado teocrático com demolidora ironia. De todos os episódios da vida pessoal de Cildo contados no filme, esse é mesmo o mais comovente. A origem dessa instalação monumental, montada em diversos países, da Suíça aos EUA, remonta à infância do artista. Mais exatamente, à indignação do pai de Cildo, encarregado de investigar o genocídio dos índios craós, episódio comentado posteriormente numa instalação (Sal sem Carne, 1975). A obra, que contrapõe a fala de um índio à celebração de uma missa, condena a expropriação do território indígena e, mais que isso, denuncia o massacre promovido por fazendeiros nos anos 1940. De um avião eles jogaram sobre a aldeia indígena roupas contaminadas com vírus da gripe e bacilos da tuberculose. Cildo, que cresceu sob o impacto da arte conceitual na época da ditadura, nunca mostrou pudor em deixar que a política contagiasse sua obra artística, embora sempre tenha demonstrado aversão ao panfletarismo. O filme de Moura traz flashes de outros documentários realizados sobre o artista (pelo falecido crítico Wilson Coutinho, entre eles) que revelam como a questão política sempre foi tratada em nível elevado de criação e investigação, afrontando as autoridades com obras subversivas como Inserções em Circuito Ideológico: Projeto Coca-Cola (1970). A obra consistia em escrever sobre garrafas do refrigerante mensagens de protesto contra o imperialismo e devolvê-las ao mercado para confundir os consumidores. Esse espírito dadaísta esteve presente em várias obras do artista nos anos 1960 e 1970. Já os trabalhos mais recentes provocam o espectador de outra forma, convidando-o a explorar espaços físicos e políticos com o próprio corpo. No filme, duas obras - as instalações Através (1989) e Marulho (1997) - traduzem a preocupação de Cildo com mecanismos de percepção além do visual. O som nas duas obras tem papel fundamental. Uma das poucas intervenções musicais na econômica trilha do filme é uma composição de John Cage. Assim como os povos indígenas foram afetados pelo tacão do colonizador, a família de Meireles também sofreu com a exoneração do pai e a transferência para Brasília por conta das denúncias do genocídio indígena. De qualquer forma, a capital federal foi importante para sua formação. Foi nela que viu um dia a miniatura de uma casa, construída com gravetos por um morador de rua, matriz da fatura de suas instalações.

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