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Cidadezinhas resume o que é bom e ruim em seu legado

Romance é um painel histórico moldado pela visão de um senhor de 70 anos

Por Ricardo Lísias
Atualização:

O lançamento no Brasil do romance Cidadezinhas e a morte do seu autor, John Updike, servem de pretexto para discutir tanto a obra desse escritor incrivelmente prolífico quanto, mais amplamente, a prosa produzida pelos Estados Unidos durante o último meio século. O assunto torna-se mais interessante depois da declaração do secretário da Fundação Nobel, que afirmou o isolamento e chegou a insinuar certa pobreza dos escritores americanos. Cidadezinhas é um esforço de memória de um senhor de 70 anos que passou a vida morando em municípios pequenos, com o típico cotidiano coadjuvante da classe média. O começo do livro descreve a rotina matrimonial de um casal de idosos, carinhosos e meio desajeitados um com o outro, mas logo a memória desloca os acontecimentos, retrocedendo até os anos da 2ª Guerra Mundial. A partir daqui, o que aparece então é um painel histórico descrito pela visão do burguês semicaipira que protagoniza o livro, tendo como base sua vida sexual. O estilo é límpido, nunca confuso ou truncado, mas se perde em alguns clichês impressionantes para um autor celebrado como um dos melhores dos Estados Unidos. Sem falar dos trechos de sexo propriamente dito: são mecânicos, conservadores em todos os aspectos e fazem corar não pela matéria narrada, mas pela maneira com que isso é feito. Esse é o principal problema dos últimos livros de Updike publicados por aqui: tudo é descrito com um lugar-comum e uma simplicidade de análise que tornam a leitura às vezes torturante. Um bom exemplo é Terrorista. Assim, Cidadezinhas serve um pouco como resumo do que sobra de bom e de ruim na obra de Updike. O lado positivo é a descrição histórica da vida recente norte-americana, sempre do ponto de vista da classe média. Pode parecer pouco, mas talvez tenha sido essa classe social, com o apoio dos ricos, que definiu os acontecimentos importantes (e bélicos) do mundo recente. Ao lado das de Philip Roth, que trabalha com um estrato social um pouco distinto e no mais das vezes mais ilustrado, mas tem em vários livros essa mesma intenção de crônica, talvez não haja narrativa mais reveladora do que a empreendida por Updike na "tetralogia do Coelho". Nos quatro romances e no volume de contos que compõem o painel, Harry Angstrom se divide entre o casamento, o filho recém-nascido e as dificuldades e seduções que a vida de adulto, que para ele começava, oferece. Depois, tudo se desdobra nos elementos comuns a uma vida de classe média de um empreendedor semibem-sucedido. Como pano de fundo, toda a segunda metade do século 20, a contracultura, o belicismo, os movimentos políticos e culturais da sociedade americana, sempre problemática, para dizer o mínimo. Os livros são divertidos, bem escritos e às vezes surpreendentes. No entanto, lendo-os com cuidado, é possível notar certo conservadorismo de Updike, que no final de fato parece defender o establishment. É nisso que Philip Roth, ainda que também peque às vezes pela ingenuidade da crônica histórica, leva enorme vantagem sobre Updike. Mesmo que os dois acreditem na neutralidade da linguagem, Roth é bem menos conservador. O equivalente cinematográfico a tudo isso talvez seja os últimos filmes de Denys Arcand. A propósito, tal crença na linguagem como um meio neutro, apenas uma ferramenta imparcial na mão do escritor é a principal limitação de toda essa geração de grandes romancistas americanos (Saul Bellow é outro caso). Aqui, com mais ou menos consciência, maior ou menor angústia, derrapam o próprio Roth, além de Don DeLillo e Norman Mailer, entre outros. No entanto, Updike deve ser o mais ingênuo nesse aspecto, o que o torna o mais conservador. Hoje, parece claro que toda prosa termina com um aspecto inevitavelmente narrativo. É assim até nos momentos mais radicais de Samuel Beckett. Quando a principal preocupação, porém, é apenas "contar uma boa história", sem atentar ao detalhe de que a linguagem não é neutra e talvez seja, ou o estilo que ela cria, o principal para a literatura, o resultado final é esteticamente limitado. Por isso, nenhum dos autores citados pode ser chamado de grande escritor. No entanto, creio que o secretário da Fundação Nobel errou. Do mesmo jeito, acho que essa geração de cronistas romancistas tem a importância de criar o painel em que as grandes obras da prosa americana contemporânea se escoram. Thomas Pynchon e David Foster Wallace têm uma relação bem menos ingênua com a linguagem e devem ser dois dos escritores mais esteticamente relevantes surgidos nas últimas décadas. Com certeza, muito da obra de ambos, sobretudo no caso de Foster Wallace, se deve à extrema dedicação à literatura a que escritores como Updike se entregaram. Quando a literatura se torna objeto de tanto esforço e entrega, o resultado acabará sendo notável: John Updike não foi brilhante, mas fundamental para os que se tornaram os escritores americanos de primeira grandeza. Ricardo Lísias, escritor, é autor de, entre outros, Anna O e Outras Novelas Cidadezinhas John Updike Tradução de Paulo H. Britto Cia. das Letras, 368 págs., R$ 55

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