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Chave para entender a obra de Le Corbusier

A Viagem do Oriente revê a educação estética do arquiteto ainda jovem

Por Rosane Pavam
Atualização:

Talvez seja exagero pedir a um admirador de Le Corbusier (1887-1965) que localize em A Viagem do Oriente os traços embrionários de seu pensamento peculiar, fundador da modernidade arquitetônica em um só golpe. Corbusier, então somente o franco-suíço Charles-Edouard Jeanneret, desenhista do ateliê Peter Behrens, em Berlim, contava 23 anos naquele 1910 e mais se extasiava com uma trajetória de conhecimento perseguida desde o século anterior do que se ocupava em definir a arte vindoura. Antes que os dois amigos empreendessem a viagem, o roteiro de descobertas para jovens naquela idade atingia principalmente a Itália. Corbusier era um pensador, alguém para quem não deve ter passado incólume a tentativa de muitos intelectuais de percorrer origens mais fundas de seu caráter europeu. O século 19 dera a Corbusier a crença de que o saber visual vinha do Oriente. O jovem decidira então viajar naquela direção na companhia de um amigo, Auguste Klipstein, o Klip, fumador de charutos hábil em retirar "o rubi das garrafinhas", com a meta de atingir Constantinopla. E também, nas horas vagas, quem sabe, o amor. Já alguma coisa lhes dizia que as verdades da proporção e da comunhão se encontravam em um certo fazer bizantino, longe da Europa das regras católicas. Jeanneret e Klip não tinham lá muito dinheiro, mas mesmo assim, de maio a outubro daquele ano, percorreram, além de Itália e Grécia, a Boêmia, a Sérvia, a Romênia, a Bulgária e a Turquia, visitando feiras populares e dormindo em camas habitadas por percevejos, em busca de atestar sua intuição de leitores. Antes que viesse a cólera, Jeanneret visitou a Acrópole e, das ruínas do Parthenon, extraiu sabedoria de suas enormes proporções, inatingíveis para um construtor de seu tempo. Quem escreve aqui não é exatamente, ou nem tão-somente, o Corbusier da juventude, antes aquele às vésperas da morte no mar, que reviu seus cadernos em 1965 com a intenção de oferecê-lo ao irmão, o músico Albert Jeanneret. Paralelamente a este caderno de viagens, que fora concluído em 1914 e não pudera ser publicado em razão do início da Primeira Grande Guerra, ele revisava, às vésperas dos 80 anos, seu testamento, um acerto de contas, o Mise au Point. A Viagem do Oriente é o que parece, não um trajeto em direção a um lugar, mas a aventura de conhecê-lo intimamente. O Oriente revela a Corbusier a sabedoria de lidar com o fim. Muitas vezes este livro se parece com uma obra de maturidade, porque, nele, estão a visão direta da morte e a preocupação de quem a intui. É onde o mundo se assemelha a uma ruína o local onde Corbusier, novo ou velho, finca a condição humana. Um oriental sabe disso melhor que um europeu, ele se dá conta. Dói-lhe ver a suja Sarajevo, esta que quatro anos depois de sua observação dará início a uma guerra fratricida de enormes proporções. Na Turquia, no entanto, ele enxerga o homem sereno, assertivo em sua fé, aquele que constrói sepulturas erguidas como igrejas até no quintal de casa, porque nunca lhe abandona a consciência de uma ultrapassagem natural da condição terrena. "A vida do turco transcorre da mesquita ao cemitério, passando pelo café onde se fuma sem conversar", ele observa. "É um privilégio para os cafés, tão decentes na entrada, conterem em seu próprio pátio, num montículo cercado de uma grade, a sepultura de algum santo." A Istambul em chamas que ele presencia reforça a imagem dessa aceitação. Apesar de ser uma viagem do Oriente, não se trata, aqui, de passear pelo local liberto de etnocentrismo. Ele sempre tem a medida de um ocidental, ou de um giaur (nome depreciativo dado pelo turco ao cristão), quando vê a maneira pela qual os turcos negociam badulaques para turista. Corbusier, ele mesmo, não sabe viver sem esse comércio: ele lamenta que os museus estejam todos a uma distância fria, impossibilitando ao apreciador um convívio mais íntimo, sensação que as quinquilharias, afinal, lhe proporcionariam. Mas, nos desenhos de sua autoria aqui publicados, há apenas essa visão arquitetônica de torres, tumbas, igrejas, uma visão que dispensa os traços de vida dos passantes. Uma só foto tirada com sua máquina Cupido nos é revelada. Em suas descrições, há muitas mulheres, e inquietantes. "As dobras de suas capas enquadram a cabeça e vão se apagar sob os quadris, dando-lhes um aspecto de morcegos imóveis. Elas são um pouco como aquele demônio nas torres de Notre Dame. Olham fixas para os grandes campos eriçados de tumbas." Mais adiante ele as admira como a mesquitas e as descreve de um modo que se parecerá idêntico àquele que seu olhar aplica às construções sólidas... Ou estará falando apenas de arquitetura? "Encantadoras, não obstante e também, agora, por causa dessa segunda saia lançada sobre a cabeça e que forma uma impenetrável viseira. Há muito coquetismo ali embaixo (...). Quase todas são jovens, adoráveis; com bochechas um pouco cheias, mas de marfim e olhos de gazela tonta - tão apetecíveis! De resto, esses véus guardam um mistério penetrável. Sinto que há milhares delas que querem ser bonitas; e, quando se tem esse demônio, todos os códigos são contornados." Mais importante do que o voyeurismo das saias é o dos pilares. Corbusier deplora a ausência de sensualismo nos novos artistas romenos ou nas linhas austríacas. É no Oriente simbólico que alimenta sua visão. Para seu trabalho, almejará a concepção de um espaço harmônico, comum, interligado. "Será que não precisarei, para dirigir essas forças simples e eternas, do trabalho de uma vida, sem sequer ter a certeza de chegar a uma proporção, a uma unidade, a uma clareza dignas de um pequeníssimo casebre de província, construído segundo as leis inestimáveis de uma tradição secular?" É freqüente, neste livro, que Le Corbusier lamente sua pouca habilidade com as palavras. Se soubesse escrever, ele diz, nada lhe escaparia sobre uma folha de papel. E tudo parece lhe escapar... Quando desenha, um homem sintetiza; quando faz literatura, insinua. Suas palavras são demasiadas, mas não é isto que ele constata: "Acreditem que entre cada uma de minhas linhas faltam cem."

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