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Céu de trilhas, por Castañeira de Dios

Premiado compositor argentino está no Rio como jurado do CineSul e para debater sobre o paraíso da música nos filmes

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

José Luis Castiñeira de Dios viveu exilado na França, entre 1977 e 1989. Grande compositor argentino, quando foi obrigado a abandonar seu país, para fugir à ditadura militar, ele já era famoso por suas investigações sobre a música tradicional da América Latina, tendo criado em 1972, com a cantora e pianista Susana Lago, o conjunto Anacrusa. Com o Anacrusa, Castiñeira de Dios gravou dez discos, na Argentina e na França. Durante o exílio francês, ele fez a trilha de Tangos, o Exílio de Gardel, de Fernando ''Pino'' Solanas'', pela qual recebeu o César, o Oscar do cinema francês. Não é de admirar que Castiñeira, ao assumir a direção de filmes, tenha estreado justamente com um roteiro sobre um compositor, e ainda por cima um exilado, como ele. Entre 1939 e 1946, fugitivo da Guerra Civil Espanhola, o campositor andaluz Manuel De Falla viveu exilado na Argentina, onde morreu, perto de completar 70 anos, deixando inacabada uma obra intitulada Atlântida, que foi concluída por um discípulo. De Falla fora à Argentina em busca de paz interior para realizar esta obra na qual acreditava, e que esperava fosse uma súmula do seu trabalho. Estava abalado pela morte de seu amigo, o poeta Federico García Lorca, fuzilado pelas forças do general Franco. Castiñeira de Dios não sabe se o amor de De Falla por Lorca era puramente platônico. O poeta, homossexual assumido, não era homem de fazer segredo de seus amores numerosos. Nunca incluiu o músico entre eles. Mas sua morte foi muito dolorosa para De Falla. Castiñeira conta essas coisas durante o café da manhã com o repórter do Estado, num hotel do bairro da Glória. Ele está no Rio participando do Cinesul - Festival Ibero-Americano de Cinema e Vídeo, que vai até dia 28. Castiñeira integra o júri da mostra competitiva e aproveita para assinalar a qualidade dos filmes em exibição. Ser jurado não é sua única atividade no Cinesul. Castiñeira participa hoje à tarde, a partir das 14h30, no auditório do MAM, no Rio, de um encontro com o também compositor (brasileiro) David Tygell para discutir a música para cinema. Como se dá o processo de criação da trilha sonora de um filme? Como se integra a música às imagens? É um pouco sobre isso que Castiñeira e Tygell vão falar. ''Já nos encontramos na segunda-feira (dia 16, na abertura do Cinesul). David é muito bem humorado. Acho que vai ser um encontro prazeroso, de amigos. Trouxe algumas coisas para mostrar, ele também selecionou algumas cenas de filmes para os quais compôs as trilhas. Não creio que vá haver polêmica. Vamos falar de nossas experiências e responder ao público.'' O exílio foi decisivo na vida de Castiñeira de Dios, que hoje reside no bairro de San Telmo, em Buenos Aires. Os 12 anos que ele foi forçado a viver fora da Argentina o marcaram profundamente. Como ele diz, ''nos primeiros dois anos, você está numa fase de reconhecimento. Ou você mimetiza, adaptando-se à cultura do país em que está vivendo, ou o desenraizamento acirra ainda mais sua ligação com as origens. Foi o que ocorreu comigo.'' Seus amigos sempre lhe disseram que viver exilado em Paris não pode ter sido experiência tão dolorosa como ele diz. Castiñeira conta uma história. ''Um sujeito morre e o próprio São Pedro o espera na porta do paraíso. Ele diz que não pode entrar sem antes dirimir uma dúvida: foi virtuoso porque quis ou por medo de assumir todos os pecados que talvez gostasse de ter cometido? Ele pede a São Pedro licença para ir ao inferno. Bate na porta e duas mulheres ''tremendas'' o recepcionam. Vinho corre das torneiras. O verdadeiro paraíso é aquilo. O homem volta a São Pedro e lhe diz que prefere ficar no inferno, que é seu lugar. Bate na porta e, em vez das duas gostosas, aparece um Diabo que o espeta com seu garfo e o põe para tostar no fogo. O homem pede explicações. O que é isso? Onde estão as belas mulheres? O Diabo responde - uma coisa é turismo, outra é imigração.'' A história não vale apenas como piada. Ela ilustra o desamparo do exilado. Castiñeira de Dios passou por isso, Manuel De Falla, também. E por isso Castiñeira quis contar sua história, no filme que tem como título Manuel De Falla - Músico de Dois Mundos. Mas, como ele, a direção não era seu objetivo. ''Talvez tenha sido, quando eu ainda era mais jovem, mas depois me orientei para a música. O projeto sobre De Falla começou como um roteiro que escrevi com Maria Ibañez Lago e que foi oferecido a vários diretores, mas nenhum se interessou e eles ainda me diziam - o personagem é seu, por que não faz o filme?'' No total, foram oito anos de idas e vindas. A própria filmagem foi complicada e estendeu-se por dois anos. A produção ficou sem dinheiro e teve de ser interrompida. Ao invés de desanimá-lo, tudo isso fortaleceu o desejo de Castiñeira de contar a história. Ele filmou em Buenos Aires, Córdoba e Alta Gracia na Argentina, e em Granada e Cádiz, na Espanha. Até por sua vinculação com a música de raiz latino-americana, Castiñeira é fascinado pela música ''gitana'' (cigana) de De Falla, cuja origem é indiana. Interessa-lhe pesquisar justamente a forma como um artista chega a produzir seu trabalho fazendo um mix de influências tão distintas. Quando o repórter lhe pergunta se suas pesquisas sobre a música de raiz inclui a brasileira, Castiñeira responde que ''por supuesto, sí.'' Não lhe interessa muito pesquisar o que separa a música brasileira da hispano-americana, e que é muito mais a contribuição africana. Ele busca o que elas têm em comum, a vertente nordestina, que não é apenas musical, mas literária. ''É uma música anterior à Renascença e à própria formação dos Estados europeus. Remonta a tradições muito antigas como a dos Pares de França, que foram assimiladas como narrativas orais no Nordeste.'' Entre as cenas que Castiñeira vai mostrar hoje aos cariocas está a do choro, que compôs para Vereda Tropical, de Javier Torre, com base no chorinho brasileiro. Vereda Tropical narra o período em que o escritor argentino Manuel Puig viveu no Brasil. Puig é autor, entre outros livros, de Boquitas Pintadas, que foi adaptado para o cinema pelo pai de Javier Torre, Leopoldo Torre Nilsson, homenageado do Cinesul deste ano. Seu César, ele não o recebeu sozinho, mas compartilhado com Astor Piazzolla, que compôs um belíssimo tema para Tangos, o Exílio de Gardel, que Castiñeira acrescentou, a pedido de Fernando Solanas, a uma trilha que, partindo do tango tradicional, deveria levar ao que o diretor chamava de ''tango do futuro''. Castiñeira tem a maior reverência por Piazzolla. ''Era especial, um gênio'', define. Ele prepara um musical sobre Piazzolla, com estréia prevista para o começo do ano que vem, em Buenos Aires. É um grande contador de histórias sobre o tango ''jazzificado'' de Astor. O grande sonho do compositor argentino era a ''reunión cumbre'' com Gerry Mulligan. Piazzolla era um perfeccionista. Acertou tudo para que o encontro dos dois saísse perfeito. Mulligan chegou borracho (bêbado) e, mesmo assim, produziram aquele disco inesquecível. ''Años de Soledad é a perfeição'', resume Castiñeira. Ele fez a direção musical de um revival da ópera de Piazzolla, Maria De Buenos Aires. Balada para un Loco foi composta para a voz de Amelita Baltar. Ninguém cantava como ela - exceto a italiana Milva, que Castiñeira considera tão boa, no papel de Maria, quanto Amelita. Apesar dos prêmios e do reconhecimento, ele não se considera só um compositor de (ou para) cinema. Castiñeira de Dios produz música abstrata, mas seu gosto pessoal é pela música narrativa, seja cinema, balé ou qualquer outra manifestação em que ela esteja a serviço de uma história. Em 2006, ele ganhou o Condor, prêmio atribuído pela Asociación de Cronistas Cinematográficos de la Argentina, pela trilha de Captive, de Gaston Birabén. Castiñeira reconhece a vitalidade do cinema argentino atual, mas faz uma ressalva. ''É um cinema com o pé na realidade, que fala a linguagem do cotidiano e da rua. Sua forma termina acompanhando esse conceito. Temos bons filmes, mas os grandes filmes, que ficam para a história, são mais raros.'' No ano passado, foram produzidos cerca de cem filmes na Argentina. As trilhas foram assinadas por 80 diferentes compositores. ''É uma produção de alguma forma artesanal, feita entre amigos.'' Castiñeira não critica, apenas constata.

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