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Cenas memoráveis do grande palco

Numa megalópole como São Paulo, fica cada vez mais difícil observar obras-primas entre milhares de espetáculos

Por Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Visto ainda bem de perto, o ano teatral que acaba esta semana não teve nada de mais. Ou seja, espetáculos memoráveis emergindo entre alguns milhares. A cada ano, os paulistanos têm mais opções de lazer e mercadorias na mesma proporção em que aumentam as probabilidades de serem vitimados por catástrofes de toda ordem. Enfim, é preciso muita gente fazendo arte durante muito tempo para que, desse meio de cultura, se destaquem produções de estatura incomum. São Paulo não difere, no que diz respeito à produção artística, de outras cidades grandes. Megalópoles crescem como fungos em todo o planeta e quem é obrigado ou escolhe viver nelas acaba encontrando recursos para simbolizar a aniquilação momentânea do indivíduo na multidão. A bem da verdade, há modos agradabilíssimos de submergir no todo e usufruir por algum tempo o anonimato - e a cidade oferece oportunidades festivas, religiosas ou de expressão política que mimetizam, tanto quanto a arte, a polis acolhedora. Não foi, contudo, a face solar do convívio urbano que levou a Sutil Companhia de Teatro a escolher os contos de Dalton Trevisan como matéria-prima do espetáculo A Educação Sentimental do Vampiro. Dirigida por Felipe Hirsch e apresentada no Teatro Popular do Sesi, a encenação confrontou a máscara do cidadão afivelada sobre o rosto de cada espectador. Por várias razões, e uma delas apenas é a disponibilidade da tecnologia de captação de imagem e som, estamos em uma época em que os documentos sobre a vida nas cidades se multiplicam, ampliando o conhecimento - e tornando impossível ignorar - a realidade socioeconômica onde predominam a desigualdade e a violência. Na representação teatral inspirada em Dalton Trevisan não é preciso, portanto, referir-se uma vez mais a organizações sociais com vigência histórica. Com o anzol da estética que procura o feio e estiliza o repelente, sem nenhum vínculo com a desgastada matriz melodramática, a Sutil Companhia de Teatro invoca o atrito social e sexual, que não produz calor nem satisfaz, simboliza a indiferença latente sobre as práticas rotineiras de comunicação e, sobre tudo isso, como uma pátina, sugere impulso para o isolamento e para a quietude mortal que é o avesso das aglomerações forçadas. Não por acaso a civilização, como idéia e também como processo histórico em curso, aparece como tema de outros grupos teatrais da cidade. Os recortes históricos específicos, os aspectos contingentes da política e da ordem social talvez tenham referências exploradas em trabalhos anteriores. De qualquer modo, há um conjunto expressivo de encenações cujos temas sintetizam as repetições desta era (tão longa nos parece) em que prevalece o capitalismo financeiro. O grupo Folias d''''Arte parece ter perdido senão a esperança, a paciência. Apresentou este ano um espetáculo irado e animado na mesma medida das suas produções anteriores. A diferença, no entanto, está na conclusão que acrescenta à Orestéia, significativamente subintitulada O Canto do Bode. Bem ao contrário do propósito de Ésquilo, a leitura contemporânea da trilogia não celebra a instauração da justiça democrática, mas representa a redenção jurídica metaforizada pela instauração do tribunal civil como um golpe demagógico, prelúdio melancólico de inumeráveis democracias de fachada. É também do sentido mais profundo da palavra civilização, resvalando a vertente antropológica, que falam dois bonitos espetáculos criados por grupos paulistanos. Vem-Vai, o Caminho dos Mortos, espetáculo da Cia. Livre de Teatro, trabalha sobre a mitologia ameríndia, enquanto Terra sem Lei, criação coletiva do grupo Argonautas, reflete sobre o modo como as linguagens artísticas depuram tragédias e comportamentos transgressores até produzir alguma outra coisa. Nesses casos mencionados prevalece, como idéia e processo criativo, a ênfase na metamorfose. Visitas de grupos ou companhias de outros Estados trouxeram um repertório de diversidade previsível e qualidade excepcional. Do Rio de Janeiro veio O Púcaro Búlgaro, transposição para a narrativa oral do livro de Campos de Carvalho dirigida por Aderbal Freire Filho. O gênero que o diretor nomeou ''''romance-em-cena'''' é, em vez de uma adaptação, reconhecimento e exploração dos espaços e tempos implícitos na literatura e que demandam a voz e o corpo dos intérpretes para ser o que desejam como texto (e não como o autor ou o leitor os imaginam). Está aí uma perspectiva engraçada, lúdica e promissora da relação entre teatro e literatura. Também cariocas duas outras encenações com propostas quase antagônicas ocuparam os palcos da cidade. Gaivota, criação da Companhia dos Atores, parece-nos o ápice da maturidade artística de um grupo que escolheu, desde o início da sua trajetória, o campo da linguagem como motivo recorrente. Bonito de doer, o espetáculo trabalha sobre as refrações de uma peça que se tornou, além da narrativa, um mito e uma alegoria de toda a arte moderna. Também carioca, mas clássico, o diretor Dudu Sandroni fez de Rasga Coração, última peça de Oduvaldo Vianna Filho, uma homenagem do encenador e dos intérpretes à alta qualidade do texto. De Minas veio o delicado Pequenos Milagres, criação do grupo Galpão. De Porto Alegre veio o espetáculo Kassandra in Process que, sob esse título pouco simpático, ofereceu uma das melhores interpretações femininas que os paulistanos têm tido a oportunidade de ver. Tânia Farias é uma espécie de protagonista por destino que arrasta consigo os mil navios gregos e põe abaixo as muralhas de Tróia. Entre todas essas coisas boas inscritas na memória dos privilegiados paulistanos que conseguiram ingresso está Les Éphémères, encenação do Théâtre du Soleil. Em 2007, morreu José Vicente, dramaturgo cuja peça Santidade foi encenada este ano pelo Teatro Oficina. E morreu o ator Paulo Autran, estrela máxima da constelação do moderno teatro brasileiro. Não é preciso distância temporal para compreender a significação desses acontecimentos.

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