PUBLICIDADE

Casa do choro

Na peça As Centenárias, Marieta Severo e Andréa Beltrão vivem duas carpideiras

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A revista rodou, durante meses, de mão em mão no salão de beleza da Marilda, um dos cenários do seriado global A Grande Família. "Eu já nem tinha mais vontade de ler", conta a atriz Marieta Severo, que vive a personagem Nenê. "Eu também, pois sabia todos os detalhes da matéria, que falava de mulheres com mais de 100 anos", completa Andréa Beltrão, a Marilda. Foi com uma gargalhada, portanto, que elas receberam a sugestão do dramaturgo Newton Moreno de ler justamente aquela matéria. "Ele tirou dali a ideia da peça que pedimos para escrever", completa Marieta, lembrando como nasceu As Centenárias, montagem que estreia hoje no teatro Raul Cortez, depois de quase dois anos de sucesso no Rio. Ambientada no sertão nordestino, é a história de duas amigas carpideiras, Zaninha (Andréa) e Socorro (Marieta), que passam a vida percorrendo velórios, chorando os mortos, ouvindo e contando histórias. E também fugindo da morte, que quer levar o filho de uma delas. "Parece história triste, mas não é", alerta Andréa. "O humor domina os passos dessas duas mulheres, conforme pedimos ao autor." Newton Moreno escreveu As Centenárias por encomenda das atrizes. A única exigência era que fosse um texto engraçado, uma vez que ambas haviam encerrado a temporada de Sonata de Outono, poderoso drama entre mãe e filha pianistas, inspirado em um filme clássico de Ingmar Bergman. "Fiquei tão encantada com Agreste, que percebi ser aquele nosso próximo caminho", conta Marieta. Moreno partiu, então, da amizade das atrizes (desde 1989 dividem trabalho no cinema, teatro e TV) para criar um texto que brincasse com a morte, tema muito presente no imaginário popular. "Com Marieta e Andréa em mente, as carpideiras começaram a ganhar corpo e voz e assumiram o protagonismo absoluto da peça", afirma o dramaturgo. Inicialmente, ele imaginou que as duas viveriam Zaninha e Socorro em dois momentos: ainda jovens, quando se conhecem, e já beirando um século de vida. Os outros personagens seriam alternados por dois atores. "Era a solução mais prática, mas a gente se apaixonou pelos outros e não queríamos largar", brinca Andréa. O impasse tornou-se um estímulo criativo para o diretor Aderbal Freire-Filho. "Busquei aproveitar o máximo da cultura popular, que trabalha com a morte não apenas pelo lado trágico, mas usando também uma comicidade. Daí surgiram os bonecos, que representam os demais personagens", comenta o encenador. Com isso, Marieta e Andréa receberam a tarefa de manipular bonecos, alguns das próprias Zaninha e Socorro. "Tivemos aulas de manipulação e também de canto", conta Andréa, lembrando do aprendizado das incelenças, cantos religiosos de louvação do defunto. "Os bonecos permitem que as duas carpideiras estejam sempre em cena", esclarece Aderbal. "Assim, quando Andréa encarna o coronel traído, Zaninha passa a ser a boneca manipulada por Marieta." O diretor aproveitou também o fato de trabalhar ao lado de um dramaturgo interessado na evolução de seu texto a partir da constante troca de ideias antes mesmo de começarem os ensaios. Adepto da sofisticação da cultura popular, que permite a reinvenção da palavra, Newton Moreno promoveu modificações ao criar cenas para personagens que antes eram apenas citados na conversa das carpideiras. Assim, além de Zaninha e Socorro, outros 11 aparecem em cena. "Nesse aspecto, o ator Sávio Moll desempenha uma figura crucial na história. Além de manipular a boneca Mulher de Luto, ele é a própria morte. É forte a imagem popular que associa a morte a um grande titeriteiro, que manipula pessoas como fantoches", diz Aderbal. O tom circense foi reforçado também com o cenário em forma circular, como um picadeiro, e uma enorme parede de bonecos (veja ao lado) cobrindo o fundo. "O circo é um suporte fundamental, pois comanda até a forma como cada personagem entra em cena, percorrendo o círculo e repetindo a tradição circense dos artistas que se apresentam para a plateia", comenta o diretor. "Entramos na tradição popular da paródia, da bufonaria, do palhaço, do riso que não se intimida nem mesmo com a morte." Serviço As Centenárias. 90 min. Teatro Raul Cortez. Rua Dr. Plínio Barreto, 285, tel. 2198-7701. 6.ª, 21h30; sáb, 21 h; dom., 17 h. R$ 80/R$ 90 Trecho ZANINHA Eita, fome. Socorro, mulé, eu já tou palestrando com minha barriga. Ela tá falano comigo de tanta fome. Tu ouviu? SOCORRO Quieta (Pausa). Zaninha, eu tô com um sentimento que Ela está por aqui. ZANINHA Mas Ela nunca aparece, a não ser que seja assunto sério. Da última vez que ela apareceu para nóis, tu te alembra bem o que se assucedeu... Será que Ela adescobriu que...? SOCORRO (Tapando-lhe a boca) Silêncio. Tô que só me arrepio, mulé. Num tem um pelo meu quieto no seu canto. ZANINHA Eita, Socorro. SOCORRO Eita, Zaninha. SOCORRO Tu já pensou numa coisa, Zaninha? ZANINHA Pensei em duas: cuscuz e buchada. SOCORRO Eita, mulé, tu num tira comida da cabeça. ZANINHA Só tiro quando ela chega no bucho. SOCORRO O defunto num morreu, mulé. Ora e entonce dessa vez nóis encontra Ela. ZANINHA Ai, mulé, pior. Ela encontra nóis. SOCORRO Viuge, chegou o dia. Hoje faiou o jeito que nóis achô de num cruzar nossos caminho. (Trecho da primeira cena)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.