Carybé voa com destino a Miami

A movimentada história dos painéis que migraram de um aeroporto a outro e quase foram destruídos

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Por Jotabê Medeiros e MIAMI
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De um lado, pioneiros com armas e cães avançam cavalgando e conduzindo carroças rumo ao Oeste, com faces sombrias e queixos erguidos, orgulhosos. Do outro lado, dezenas de festeiros de todas as Américas: habitantes do altiplano boliviano, deuses maias e astecas, violeiros country, flautistas, índios do mardi gras de New Orleans - e, se o viajante reparar bem, verá também uma baiana do acarajé no lado esquerdo do painel. Essa baiana do acarajé é uma espécie de segunda assinatura do artista que fez esses gigantescos murais: Hector Julio Paride Bernabó, que o Brasil conhece simplesmente como Carybé (1911-1997). Trata-se de uma das maiores obras de arte pública de um artista nacional fora do Brasil (Carybé nasceu na Argentina, mas desenvolveu obra e carreira na Bahia). Os coloridos murais de Carybé quase foram destruídos no ano passado. Isso mesmo: destruídos. Desde 1960, estavam instalados (o próprio artista os fez ali, sozinho, com pedra, cinzel, cimento e ferramentas, após ganhar um concurso em 1959) em um terminal de passageiros do Aeroporto JFK, em Nova York. Obsoleto, o prédio seria demolido para dar lugar a instalações mais modernas. Em meados do ano passado, admiradores da obra descobriram que os murais só teriam mais um mês de existência. Em poucos dias, seriam dinamitados, 50 anos após desenhados. Mas, por artimanhas do destino e, claro, dos orixás, os murais foram salvos por velhos (e poderosos) amigos de Carybé, para quem a notícia caiu como bomba. Cortados em 12 pedaços, foram trazidos a Miami - e cuidadosamente restaurados, recuperados e reinstalados no aeroporto da cidade, nas paredes que margeiam uma escada rolante no novo Terminal Sul. Serão reinaugurados hoje à noite com pompa e circunstância, com a presença do Prefeito local e autoridades. A viúva de Carybé, Nancy, de 85 anos, veio da Bahia com a família para assistir ao renascimento da obra. Quando casou com Carybé, em 1946, a argentina Nancy Colina Bailey sabia que o destino do marido era verde-amarelo. A lua de mel já foi no Rio. Três anos depois, viriam para a Bahia, onde ela vive até hoje: Carybé chegou com carta de recomendação pedida por Rubem Braga a Anísio Teixeira. Em 1953, nasceria na Bahia sua filha Solange. Nancy lembra que, quando Carybé ganhou o concurso para fazer o painel no aeroporto de Nova York, dez anos mais tarde, teve de se separar dele por uns tempos. Com roupas de operário, Carybé foi viver na cidade americana por alguns meses para fazer tudo. Voltou com os US$ 60 mil que recebeu pelo trabalho. "Foi com esse dinheiro que comprou nossa casa em Brotas, onde a família viveu até a morte dele", conta Nancy. "Fiquei na Bahia porque tinha filhos pequenos." Ela conta que Carybé não falava inglês e ficou oito meses em Nova York trabalhando na peça. "Carybé estava um pouco triste, solitário. Fez o trabalho o mais rapidamente possível, porque estava com saudade da família." Os painéis são gigantescos. Medem 5 X 16 metros cada um. Sua retirada, transporte e recuperação, bancada pela Fundação Odebrecht, custou algo em torno de US$ 2 milhões. Diretor do Aeroporto Internacional de Miami, José Abreu (cubano de nascimento cuja família imigrou fugindo do castrismo) demonstra grande entusiasmo com a chegada da obra de Carybé aos seus domínios. "A obra é espetacular. É um mural muito belo, e o jeito que a luz incide sobre ele o torna mais especial ainda. Acho que vou colocar uma cadeira lá para mim, só para ficar olhando", disse. Abreu confessa que foi tudo uma série de acasos. Não havia reservado espaço algum para receber a obra de Carybé ou qualquer outra obra de arte, mas quando o procuraram com a oferta - o painel foi retirado de Nova York ainda sem ter um destino determinado -, ficou boquiaberto e ansioso para definir uma "galeria" adequada. "Apropriado" é o termo que ele mais utiliza. Miami é cidade com maior número de latinos dos Estados Unidos. Pelo aeroporto, passam 61 voos diários rumo à América Latina e ao Caribe. "Esse trabalho de Carybé é uma passagem rumo à verdadeira arte latino-americana." "Na Bahia, todo mundo conhece todo mundo", justifica Gilberto Sá, presidente da Fundação Pierre Verger e diretor da Odebrecht, e que foi grande amigo de Carybé - esteve com ele poucos dias antes de sua morte, em 1997, vitimado por um ataque cardíaco em pleno terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador (Carybé era adepto do candomblé). Sá foi quem iniciou o processo de resgate da obra do artista nos EUA. Mas Carybé era mais do que um simples conhecido: quando trabalhava com publicidade, foi o realizador do primeiro portfólio da construtora, que ainda engatinhava em Salvador. Carybé é integrante de um grupo de artistas que receberam a chancela de "baianos fundamentais": Pierre Verger (francês, mas também baiano honorário), Mario Cravo, Calazans Neto e Jorge Amado (Paloma, a filha de Jorge, disse que o enterro de Carybé foi uma das duas únicas vezes na vida em que viu o pai chorar). O repórter viajou a convite da Fundação Odebrecht

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