Carandirulândia

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

O que faz um senador em primeiro mandato, representando um Estado cujo sistema penal é tão severo que aboliu a liberdade condicional e só fica atrás do Texas em número execuções de prisioneiros? Se o senador em questão seguisse o exemplo da grande maioria dos políticos americanos, estaria em campanha como um durão, a favor de penas longas e tolerância zero com o crime. Mas James Webb não segue à risca a cartilha da precaução eleitoral. Do retrógrado Estado de Virgínia, que representa, Webb está se tornando a mais poderosa voz pela reforma penitenciária, um tema que a maioria do público ignora e mesmo democratas liberais com base eleitoral estável não têm coragem de tocar. Se formos julgar pelos números, a população que vive entre o Canadá e o México é a mais malvada do planeta. Um em cada 31 adultos está preso, em liberdade condicional ou sob monitoramento penal nos Estados Unidos, que têm 5% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Como se compara este quadro ao restante do mundo? Estados Unidos: 762 presos por 100 mil habitantes. Média mundial: 158 presos por 100 mil habitantes. A explosão populacional nas prisões americanas - nada a ver com a reabilitação dentro do sistema penal - é resultado de uma dependência química da classe política, viciada na bandeira fácil. Da passagem de leis absurdas de combate a drogas, com sentenças obrigatórias para um adolescente flagrado com uma trouxinha de maconha. E, em parte, ao que se chamava de "fadiga de compaixão", uma expressão emblemática da década de 70, quando cidades como Nova York enfrentavam a decadência agravada pela epidemia do crack e o público virou a cara para o processo de desumanização penal do qual Abu Ghraib foi apenas um exemplo extremo e visível. Depois do espetáculo repugnante do caso Willie Horton, na campanha presidencial de George Bush pai, em 1988, que ajudou a selar a derrota do candidato Michael Dukakis, os democratas tornaram-se ainda mais temerosos da associação da negligência com o crime. Willie Horton, assassino que cumpria pena quando Dukakis governava Massachusetts, beneficiou-se de um programa estadual de fins de semana em casa para voltar a roubar e matar. O anúncio, explicitamente racista, virou símbolo da sujeira eleitoral republicana, que continuou pelas campanhas seguintes. Os negros americanos, que não passam de 10% da população, contribuem com 35% dos presos. Se um negro nascido nos Estados Unidos não completar o segundo grau, ele tem 60% de chances de ir parar numa prisão. O mesmo Bill Clinton que hoje cruza o planeta como uma estrela do circuito beneficente, o escudeiro de boas causas, parou de fazer campanha em 1992, para voltar ao Arkansas e confirmar a eleitoreira e expediente execução de Ricky Ray Rector, assassino confesso com um Q.I. de 70, amplamente descrito como retardado mental. Eleito presidente, Clinton celebrou a passagem da lei da prisão perpétua obrigatória para quem cometer o terceiro crime. Graças às peculiares interpretações estaduais da lei "3 Strikes", há ladrões de galinha hoje cumprindo prisão perpétua em algum canto do país. "Uma desgraça", brada o senador James Webb que, ao contrário de Clinton, serviu no Vietnã. Webb passou a campanha de 2006 calçando as botas militares do filho que quase foi morto em combate no Iraque, na guerra que ele condenou, desde o começo. É possível que um condecorado veterano de guerra, ex-subsecretário de Defesa de Ronald Reagan, seja o porta-voz capaz de chamar atenção para as fábricas de sociopatas em que se transformaram as prisões americanas. Autor de nove livros, Webb esteve no Japão em 1984 para investigar as condições de prisão de um americano. Ed Arnett cumpria pena na gélida penitenciária Fuchu por posse de maconha. Arnett tinha queimaduras provocadas pelo frio e era regularmente mantido em prisão solitária. Hoje vivendo em Nebraska, Arnett diz a James Webb que prefere o sistema penitenciário japonês, porque "é mais justo". No Japão, ao menos, há ênfase em preparar o detento para se tornar produtivo ao fim da pena. A privatização das prisões americanas contribuiu para aumentar a alienação nacional sobre a rotina de violência, estupros e falta de treinamento profissional. A enorme quantidade de presos condenados por uso de drogas, sem o menor passado de violência, misturados a psicopatas com menos chance de reabilitação, faz com que a prisão se torne um projeto de vida e não uma passagem. Escrevo no exato momento em que o Senado de Nova York derruba o conjunto de leis antidroga conhecidas como Rockefeller Drug Laws, aprovadas nos anos 70, durante o governo de Nelson Rockefeller. O país imitou o péssimo exemplo nova-iorquino e, nas décadas seguintes, inúmeras leis semelhantes impuseram sentenças obrigatórias em outros Estados. O mea-culpa legislativo, quando assinado pelo governador David Paterson, deve vagar milhares de celas. Quem sabe, é um pequeno começo para redefinir a disposição nacional sobre o crime. Já que a orgia de castigo não se mostrou uma solução.

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