Capitu no centro do universo

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Por Matthew Shirts
Atualização:

A festa literária de Paraty, mais conhecida como Flip, foi aberta com estilo na noite de quarta-feira última. O homenageado deste ano é Machado de Assis. Debaixo de uma tenda modernosa, com holofotes dignos de um show de rock, ao lado do canal, o professor Hélio Guimarães apresentou o crítico literário Roberto Schwarz, autor de As Idéias Fora do Lugar e Um Mestre na Periferia do Capitalismo, entre outras interpretações já clássicas da obra do maior escritor brasileiro. Chegara eu à cidade algumas horas antes, e comecei a circular com a mesma sensação de quando adentrava a Disneylândia, em Los Angeles, ainda criança. O parque temático californiano traz, na entrada, uma placa com a frase ''O lugar mais feliz do mundo'' e me passou pela cabeça que deveria ser emprestada à Flip, pelo menos para a duração do evento. Para quem gosta de livros, não há nada melhor. Tem-se a impressão, daqui, que o mundo é composto, basicamente, por leitores e fãs de literatura, uma turma das melhores, a meu ver. Como se não bastasse, os ídolos passeiam entre a gente. Estão presentes Richard Price, autor do roteiro de A Cor do Dinheiro e do livro Lush Life, um dos melhores dos últimos - e próximos - anos; Tom Stoppard, que ganhou um Oscar por nada menos que Shakespeare in Love; e já deve ter chegado meu favorito pessoal, David Sedaris, mas não o vi ainda, sem falar de brasileiros ilustres, santos de casa, como Luis Fernando Verissimo, Roberto DaMatta, José Miguel Wisnik, entre muito outros. A obra do Roberto Schwarz é densa, exige atenção do leitor. Da minha poltrona assisti com certo espanto à entrada de centenas e mais centenas de pessoas, ávidas para ouvirem sua interpretação da obra machadiana. É um dos poucos, senão o único, popstar seguidor de Georg Lukács no mundo, disso eu tenho certeza. Na poltrona ao lado, o professor Lorenzo Mammi brincava com os fones de ouvido da tradução simultânea. Em vez de passar a palestra para o inglês, sugeria que se utilizasse o aparelho para oferecer uma versão simplificada da fala. E deu um exemplo. Ao ouvir do palestrante ''fenomenologia do espírito'', os fones transmitiriam ''o que passa pela sua cabeça''. Achei uma boa idéia. Quando quer, Roberto Schwarz pode ser claro e didático. A fala dele na quarta-feira passada foi cristalina. Mostrou como a interpretação corrente da Capitu, personagem do romance Dom Casmurro, mudou ao longo do último século. De traiçoeira, perigosa e potencialmente adúltera, passou a ser vista como vítima do patriarcalismo brasileiro. Aí estaria o significado da obra: ou seja, na crítica ao patriarcado que mandava no País e deturpava a imagem de Capitu. Foi brilhante, como sempre, e os aplausos, sinceros. Não é por acaso que se discute a obra do Roberto Schwarz há 30 anos. Mas na saída, comentamos, eu e o Lorenzo, que tudo bem, o patriarcado fez por merecer as críticas de Machado, mas mesmo assim nenhum de nós, nem eu, nem ele, colocávamos a mão no fogo pela Capitu. ''Fosse eu - emendou Lorenzo -, traía o Bentinho.'' Não sei se não preferiria a interpretação mais antiga da Capitu. Prefiro-a mais perigosa do que vítima. Creio que a neofeminista Camille Paglia, ao menos, concordaria comigo. E peço desculpas pelo número de autores citados. Você entende. A gente vem aqui, na Flip, assiste a umas palestras e já vai se achando. Tenho a impressão de que meu QI subiu uns dois pontos desde que cheguei. Pena que não dure.

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