Canudos (Um episódio da luta)

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Por Redação
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Em dias de junho último um dos filhos de Macambira, adolescente de 15 anos, abeirou-se do rude chefe sertanejo: Leia outros textos desta seção - Pai, quero destruir a matadeira. (Sob tal denominação indicam os jagunços o canhão Krupp, 32, que tem feito entre eles estragos consideráveis.) O sinistro cabecilha, espécie grosseira de Imanus acobreado e bronco, fitou-o impassível: - Consulta o Conselheiro - e vai. E o rapaz seguiu acompanhado de onze companheiros atrevidos. Atravessaram o Vaza-Barris seco e fracionado em cacimbas, investiram contra a primeira encosta à margem direita, embrenharam-se, num deslizar macio e silencioso de cobras, pelas caatingas próximas. Ia em meio o dia. O sol, num firmamento sem nuvens, dardejava a pino sobre os largos tabuleiros, lançando, sem fazer sombra, até ao fundo das quebradas mais fundas, os raios verticais ardentes. Naquelas paragens longínquas e ingratas, o meio-dia é mais silencioso e lúgubre do que as mais tardias horas da noite. Reverberando nas rochas expostas, largamente refletidos nas chapadas desnudadas, sem vegetação, ou absorvidos por um solo seco e áspero de gres, os raios solares aumentam de ardor; e o calor emitido para a terra reflui para o espaço nas colunas ascendentes do ar dilatado, morno, irrespirável quase. A natureza queda-se silenciosa num aniquilamento absoluto; não sulca a viração mais leve os ares, cuja transparência perto do solo se perturba em ondulações rápidas, candentes; repousa dormitando a fauna resistente das caatingas; murcham as folhas, exsicadas, nas árvores crestadas. O Exército repousava esmagado pela canícula.Deitados e esparsos pelas encostas, bonés postos aos rostos para resguardá-los, dormitando, ou pensando nos lares distantes, os soldados aproveitavam alguns momentos de tréguas, restabelecendo forças para a afanosa lide. Em frente, enorme, derramada sem ordem sobre a larga encosta em que se erige, com as suas exíguas habitações desordenadamente espalhadas, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casas, aparecia Canudos, deserta e muda, como uma tapera imensa, abandonada. Circunvalando-a, em parte, como um fosso irregular e fundo, o Vaza-Barris prolonga-se à direita, sinuoso, desaparecendo, longe, entre as gargantas abruptas de Cocorobó. No fundo, fechando o horizonte, desdobra-se a lombada extensa da serra da Canabrava... O Exército repousava... Nisto despontam, emergindo cautos, à borda do mato rasteiro e trançado de árvores baixas e esgalhadas, na clareira em que estaciona a artilharia, 12 rostos espantados - olhares rápidos perscrutando todos os pontos -, 12 rostos apenas de homens ainda mergulhados, de rastos, no seio trançado das macambiras. E surgem lentamente; ninguém os vê; ninguém os pode ver; - dá-lhes as costas, numa indiferença soberana, o Exército que repousa. Em frente, a 50 metros apenas, eles divisam o objetivo da empresa. Como um animal fantástico e monstruoso, o canhão Krupp, a matadeira, assoma sobre o reparo resistente, voltada para Belo Monte a boca truculenta e flamívoma - ali - sobre a cidade sagrada, sobre as igrejas, prestes a rugir golfando as granadas formidáveis - silenciosa agora, isolada e imóvel - brilhante o dorso luzidio e escuro, onde os raios do sol caem, refletem, dispersam-se em cintilações ofuscantes. Os fanáticos audazes aprumam-se à borda da clareira e arrojam-se impávidos sobre a peça odiada. Vingam a distância de um salto e circundam o monstro de aço, silenciosos, terríveis - resfolegando surdamente. Um dos mais robustos traz uma alavanca pesada; ergue-a e a pancada desce violentamente, retinindo. E um brado de alarme altíssimo e viril, partindo bruscamente o silêncio universal das coisas, multiplicando-se nas quebradas, enchendo o espaço todo, desdobrado em ecos que ascendem de todos os vales, refluem rápidos nas montanhas, um brado de alarme alteia-se, numa vibração triunfal, estrugidor e imenso. Formam-se rapidamente os batalhões; num momento os atacantes ousados veem-se, presos, num círculo intransponível de baionetas e caem sob os golpes e sob as balas. Um apenas se salva, golpeado, baleado, saltando, correndo, rolando, intangível entre os soldados, atravessando uma rede de balas, vingando as pontas das baionetas, caindo em cheio nas caatingas que atravessa velozmente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores aprumados da montanha... Estas e outras histórias, contam-nas, aqui, os soldados, colaboradores inconscientes das lendas que envolverão mais tarde esta campanha crudelíssima. Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico. Foram preservadas, no entanto, a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo

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