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Canudos

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Por Redação
Atualização:

Finalmente chegamos, às nove horas da manhã, à nossa base de operações, depois de duas horas de marcha. Leia a íntegra do texto Ninguém pode imaginar o que é Monte Santo a três quilômetros de distância. Ereta num ligeiro socalco, ao pé da majestosa montanha, a povoação, poucos metros a cavaleiro sobre os tabuleiros extensos que se estendem ao norte, está numa situação admirável. Não conheço nenhuma de aspecto mais pitoresco que o deste arraial humilde, perdido no seio dos sertões. O viajante exausto, esmagado pelo cansaço e pelas saudades, sente um desafogo imenso ao avistá-lo, depois de galgar a última ondulação do solo, com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até à planície vastíssima. Na montanha, a um lado, ressalta logo à vista um quadro interessante e novo. Galgando-a, primeiro numa direção, depois noutra, em zigue-zague, até vingar a encosta e subindo depois pelo espigão afora até a ponta culminante da serra, aprumam-se vinte e quatro capelas, alvíssimas, destacando-se nitidamente num fundo pardo e requeimado de terreno áspero e estéril. Não me demorarei, porém, neste assunto, do qual tratarei com mais vagar. Quando entramos, formavam na praça 1.900 homens sob o comando do coronel César Sampaio. À frente dos batalhões paraenses avultava o coronel Sotero de Menezes - um chefe e um soldado como há poucos. Divisei logo, à frente do Batalhão do Amazonas, um digno companheiro dos velhos tempos entusiastas da propaganda, Cândido Mariano, contemporâneo de escola. Houve um entusiasmo sincero e ruidoso quando, num movimento único, as 1.900 baionetas, num cintilar vivíssimo, desceram rápidas dos ombros dos soldados, aprumando-se na continência aos generais - numa ondulação luminosa, imensa. Atravessamos, a galope, pela frente das tropas e paramos afinal diante do único sobrado, nobilitado com o título pomposo de quartel-general. Apeei-me imediatamente e achei-me entre antigos companheiros, de há muito ausentes. Que diferença extraordinária em todos! Domingos Leite, um belo tipo de flâneur, folgazão nos bons tempos da escola (...), abraçou-me e não o conheci. Vi um homem estranho, de barba inculta e crescida, rosto pálido e tostado, voz áspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapéu desabado. Está aqui desde a Expedição Moreira César.(...). Como se muda nestas paragens! Gustavo Guabiru, outro engenheiro militar, foi uma vez encontrado por um contingente da força policial da Bahia em tal estado que foi preso como jagunço E não teve meios de convencer aos soldados do engano em que haviam caído. (...) O capitão Souza Franco, um dos nossos melhores oficiais de cavalaria, transmudou-se num velho inútil e combalido. Parece que esta natureza selvagem vai em todos imprimindo uma feição diversa. O major Martiniano, comandante da praça, (...) substituiu o antigo cavanhaque negro por uma barba branca. Está velho; está aqui há poucos meses. A cor muda revestindo-se de tons ásperos de bronze velho; como que mirram as carnes e os ossos incham; rapazes elegantes transformam-se rapidamente em atletas desengonçados e rígidos... Quase que se vai tornando indispensável a criação de um verbo para caracterizar o fenômeno. O verbo ''ajagunçar-se'', por exemplo. Há transformações completas e rápidas. O representante da Notícia, Alfredo Silva, assombrou-me: está num descambar irresistível para o tipo geral predominante - barba crescida, chapelão de palha, paletó de brim de cor inclassificável, bombachas monstruosas. E cada um anda por aqui perfeitamente à vontade. Monte Santo é como uma única casa, imensa e mal dividida, com inúmeros cubículos, de uma só família de soldados. Nada ainda poderei adiantar sobre a situação. As informações que hoje obtive são pouco animadoras. Falo baseado no critério seguro de colegas que lá estão há meses (...). Imaginem que, enquanto o Exército lhes ocupa grande parte de casas e os fulmina cotidianamente (...), os fanáticos distribuem (...) a atividade, revezando-se, da linha de fogo para o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho! (...) Ora, esse assédio platônico que fazemos parece que não perderá tal feição ainda quando cheguem a Canudos todas as forças com um efetivo de pouco mais de 8 mil homens. Os meus colegas que ali andam, há meses, de bússola e aneróide em punho, garantem-me que o cerco regular exige um mínimo de 25 mil homens. (...) Resta o recurso de um assalto impetuoso, rápido e firmemente sustentado; não há outro. O ataque será fatalmente mortífero. Basta examinar-se uma planta do imenso arraial. Canudos está militarmente construído e uma estampa que por aí anda nada traduz, absolutamente, da sua feição característica. (...). As dificuldades de transportes de munições de guerra e de boca podem, em parte, ser debeladas. Há tropeços, porém, irremediáveis, absolutamente insanáveis, e entre estes (...), a sede; sede devoradora e inextinguível que tem torturado a todos os combatentes. (...) Se as chuvas sobrevierem, desaparecerão estes inconvenientes, mas surgirão outros. Imaginemos um só. O Vaza-Barris, avolumando-se desmedidamente, cortará de todo as comunicações entre o Exército sitiante e a base de operações. (...) Não exagero perigos; mas o otimismo seria um crime nesta quadra. Além disto a maioria republicana da nossa terra precisa conhecer toda a verdade desta situação dolorosa, pela voz ao menos sincera dos que aqui estão prontos para compartirem do sacrifício nobilitador pela República. Não sabemos ainda se o marechal Bittencourt irá até Canudos; se esta resolução for tomada revestirei a minha incapacidade física com a minha capacidade moral e não abandonarei os dedicados companheiros. Amanhã continuarei estas notas que, com certeza, aí vão chegar com grandes intervalos, porque o serviço de correios aqui é péssimo e moroso. (Euclides da Cunha) Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico. Foram preservadas, no entanto, a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo

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