Canterbury, um Pasolini para rever

O filme, em cópia nova apresentada no CineSesc, faz parte da chamada Trilogia da Vida, parte final da obra do cineasta

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Os Contos de Canterbury reestreou, com cópia nova, no CineSesc. Isso quer dizer que as cores da fotografia de Tonino Delle Colli voltaram ao esplendor original. Baseado nos relatos de Chaucer, o filme faz parte, com Decamerão e As Mil e Uma Noites, da Trilogia da Vida de Pier Paolo Pasolini. Tríptico de exaltação da vida - quer dizer da sexualidade e da cultura popular -, em seguida renegada pelo diretor, que fechou sua carreira com o soturno Salò, filme violento e de maus presságios, porém incontornável. Salò parece o exato contrário da Trilogia, filmes de vocação aparentemente solar, muitas vezes burlescos, e que expressam um momento particular da trajetória de Pasolini. Como Decamerão e As Mil e Uma Noites, também em Canterbury a ênfase recai sobre o elemento erótico. Pasolini era sensível a esse tipo de dimensão e não apenas pela maneira desabrida como enfrentava a questão da sexualidade. Parecia-lhe interessante contrapor momentos da História em que a sexualidade fora vivida de maneira diferente da nossa contemporânea moral judaico-cristã. Em especial, prévias ao moralismo da época vitoriana, que se estende pelas primeiras décadas do século 20 até ser contestada apenas durante a breve primavera dos anos 60. Assim, Pasolini vai em busca de dois narradores medievais, Bocaccio e Chaucer, um italiano e outro inglês, em busca dessas sensibilidades alternativas. No caso das Mil e Uma Noites, trata-se de obra coletiva, anônima, provavelmente surgida entre os séculos 13 e 14. Quer dizer, aproximadamente contemporânea das de Chaucer e Bocaccio. Em todo caso, a Trilogia é tanto um descentramento como um comentário das graves questões que se impunham no início dos anos 70 - o desencanto com a falência da revolução dos costumes dos anos 60 e indícios de que o fascismo não havia sido extirpado de vez, como apressadamente se supôs no final da 2ª Guerra. Pasolini recorre a uma série de relatos em que a sexualidade está longe de ser "naturalizada" como na época moderna. Antes, o sexo aparece espreitando como força vital, que se insinua entre o pecado e a permissividade. São muitas as situações de triângulos amorosos, maridos enganados por esposas fogosas, espertezas de casais que querem fazer amor e veem-se impedidos por um motivo ou por outro. Não existe desejo sem dificuldades e, assim, o sexo aparece como força indomável que justifica esforços e riscos de todos os tipos, inclusive da própria vida. Em termos de linguagem, o filme é bastante liberal, mesmo tendo sido feito 37 anos atrás. São comuns as cenas de nudez, inclusive frontal, com os personagens (alguns vividos por atores não-profissionais) expondo sem inibição os órgãos sexuais. Pasolini dá a essa fúria da sexualidade um padrão pictórico que remete às pinturas de Bosch e Brueghel, em especial nas cenas (de antologia) do Inferno. Canterbury, como os dois outros da Trilogia, é um filme libertário, canto à vida, mas que já traz um travo de prenúncio da tragédia que viria em seguida com Salò.

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