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Calígula delira em seu trono de papel

Atual montagem, que reestréia em janeiro, opta por um tirano infantilizado e malévolo, totalmente moldado pela insanidade

Por Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Na encenação de Calígula, dirigida por Gabriel Villela, a ação da peça de Albert Camus é margeada pela referência à literatura dramática. A escrita ornamenta o fundo, invade os espaços brancos do palco e funciona como uma espécie de advertência para que o foco do espectador contemple de modo equânime os signos visuais e os argumentos esgrimidos pelas personagens em cena. São engenhosos e de forte impacto significativo os assentos do senado romano, todo ele acomodado sobre bobinas de papel pardo. E é sobre esse suporte emblemático da palavra que entra em cena para governar o imperador incansavelmente loquaz. Estão também projetadas sobre a moldura do palco ou aplicadas sobre os figurinos as nervuras cintilantes da grafia eletrônica, relembrando a morfologia sempre atualizada dos signos verbais. Além disso, o tratamento dado ao primeiro ato da peça, obediente à estrutura da retórica clássica que se inicia pela proposição do tema a ser debatido, acentua a importância da elocução. Voltados para o público como se integrassem um panteão esculpido, os senadores romanos, enquanto ainda têm força política, pronunciam as falas com a impessoalidade dos tribunos profissionais. Está no momento inicial dessa peça, aliás, o mote que ecoaria como ritmo soturno na dramaturgia de vanguarda do século passado: nada. Há nesta encenação o intróito solene que considera, com bons motivos, o parentesco da peça com o teatro clássico francês, modelo histórico de dramaturgia em que a vida passional e a reflexiva não se excluem mutuamente. Para apoiar um protagonista que considera o mundo, "tal como está", insuportável e que decide agir com lógica a partir desse pressuposto, o espetáculo se apresenta de início como o enunciado de um teorema. Por alguma razão, essa perspectiva quase serena começa a desmoronar com a entrada em cena do protagonista. A expressão de um sofrimento que se confunde com a insanidade, indicada na rubrica da peça pela sugestão de um "ar alucinado" e outras indicações de movimento para o intérprete, se transforma em uma escandalosa mascarada, semelhante, em razão do tratamento cênico, às provocações dos atos posteriores. O espetáculo não nos permite entrever a pré-história do jovem imperador, antes que a morte da irmã o conduza à consciência da finitude e da irrelevância da vida humana. Não por acaso, a organização precisa da narrativa de Camus - talvez inibidora para a imaginação dos diretores - faz com que o imperador, na primeira cena em que aparece, se comunique com seu interlocutor solidário, Hélicon (Rodrigo Fregnan), aparentando "fadiga", falando "docemente" e movendo-se "de modo natural" e "com simplicidade". Contorções e estertores faciais são um recurso estranho para a apresentação de uma personagem que deve, em primeiro lugar, perder as ilusões e os ideais. A lógica e a lucidez excepcional são, na visão do autor, indispensáveis para compreender a motivação do imperador para tornar-se um tirano. Do ponto de vista estilístico, a interpretação no modelo clássico, que propõe homens grandiosos até no exercício do mal, serve mais à compreensão desse imperador ficcional do que a torturada psicologia romântica. Gabriel Villela, porém, preferiu o delírio para moldar o trabalho de Thiago Lacerda e o resultado em cena é um protagonista que nos parece infantilizado e malévolo e, de um modo geral, incapaz das brilhantes e gélidas argüições com que o tirano desmonta tanto as ambições mesquinhas de seus colaboradores forçados quanto a inteligência de Cherea (Pascoal da Conceição), único adversário qualificado para enfrentá-lo no terreno das idéias. Tampouco as cenas grotescas, como a dessacralização da arte e do culto religioso, têm a força que poderiam ter se fosse possível entrever, sob o deboche, a memória da beleza e da devoção conspurcadas. Menos experiente do que seus colegas em cena, fazendo um esforço vocal que atrapalha a intenção das frases, Thiago Lacerda faz bem a cena em que o imperador se despede do amigo Cipião (Pedro Henrique Moutinho). Interlúdios camerísticos nessa obra de dimensão orquestral, os raros momentos de afeto permitem entrever um intérprete capaz interpretar personagens concebidas em um registro verista. De qualquer forma, esse não é o caso dessa peça em que o verismo só interessa como contraste, utilizado apenas para aumentar a estatura trágica da concepção moderna de destino: "Não se compreende o destino, e é por isso que me fiz destino", resume Calígula. Sendo assim, os senadores que humilha e aterroriza, a amante que partilha esse império cruel e o senado que ousa enfrentá-lo estão às voltas com um poder que se iguala ao da divindade, inelutável e arbitrário. Magali Biff, interpretando a amante Cesônia, compreende exatamente a posição co-celebrante da sua personagem. Grave, respeitosa e solene como devem ser as altas figuras do império que não sucumbiram ao medo e à corrupção, a composição da atriz é um contrapeso para o desenho da figura do imperador. Pascoal da Conceição, no papel do patrício Cherea, tem a clareza de elocução, a firmeza de postura e a compreensão intelectual dos termos que se opõem ao exercício da razão niilista. Comporta-se com quem sabe que enfrenta um pensador respeitável. Serviço Calígula. 100 min. 14 anos. Teatro Paulo Autran - Sesc Pinheiros (700 lug.). R. Paes Leme, 195, 3095-9400. 6.ª e sáb., 21 h; dom., 18 h. R$ 5 a R$ 20. Até domingo. Volta em 9/1

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