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Cães e gatos no mundo da razão

Série Bichos & Outras Histórias ganha novos livros de Antonio Torres, Lygia Fagundes Telles e outros

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991), Nobel de literatura em 1978, disse certa vez que, numa época marcada pela deterioração da produção literária adulta, livros para crianças podem representar a única esperança e refúgio. A cada geração, livros infantis espelham a sociedade em que surgem, conclui o historiador e autor americano Leonard S. Marcus, autor de outra célebre frase: ''''Crianças sempre têm o livro que seus pais merecem.'''' Pensando exatamente na qualidade do texto literário dirigido ao público infantil, a jovem editora Ana Martins Bergin, da Rocco, teve a idéia de fazer uma lista de grandes autores brasileiros, convidando-os a escrever seu primeiro livro para crianças. O resultado desse convite é a coleção Bichos & Outras Histórias, que comemora 100 mil exemplares vendidos, número bastante expressivo num mercado ainda tímido, embora em expansão. O mais recente livro da coleção, que já conta com cinco títulos, Minu, o Gato Azul, foi escrito pelo jornalista e autor baiano Antonio Torres, que descobriu sua vocação literária na escola rural de sua terra natal, Junco. A reação inicial de Torres, autor de livros para adultos, foi dizer não ao convite da editora. Chevalier des Arts et des Lettres na França, o escritor parecia mais à vontade tratando de temas como migrações e o exercício da memória como sobrevivência, assunto para adultos, evidentemente. Como, então, escrever para crianças sem cair na armadilha de produzir fábulas moralistas? Torres refletiu e aceitou o desafio. Minu seria não só a história de um gato - inspirada no bichano de estimação do premiado escritor -, mas principalmente uma tentativa de explicar o indecifrável para os pequenos, sentimentos como ausência e saudade experimentados por um felino. Torres mal sabia que teria de explicar a si mesmo esse sentimento. Minu, o gato, morreu assim que o livro foi lançado. A casa vazia sentiu a falta do bichinho, que aprontava todas e depois voltava para sua caminha para ''''dormir como um anjo''''. Como uma criança de contos de fada, Minu teve madrinha, acompanhou ainda filhote as fábulas que as crianças de Torres ouviram e ocupou um lugar especial na família. ''''Ele agregava a todos, era o seu verdadeiro núcleo'''', relata o escritor, atribuindo a Minu uma qualidade que tenta transmitir a seus jovens leitores, o valor do presságio, do instinto animal, quando a razão parece insuficiente para responder incômodas perguntas, como por que as pessoas envelhecem e morrem. ''''Envelhecer, para Minu, é não sentir mais cheiro de menino em casa'''', resume Torres. É ver esses meninos abrirem a porta, saírem e voltarem já adultos. Torres, que lançou recentemente Pelo Fundo da Agulha (Editora Record) e prepara o lançamento de outro livro, Sobre Pessoas (Editora Leitura), ambos para adultos, gostou da experiência de escrever para crianças, mas conta que não foi nada fácil. ''''A editora teve muita paciência e eu, bem, eu tive de reescrever o livro várias vezes'''', admite. Outro premiado autor que escreveu para a coleção, o gaúcho Moacyr Scliar diz que produzir para crianças ''''exige vocação''''. E, faltou dizer, inclinação acentuada para o relativismo. Seu livro Nem uma Coisa, nem Outra começa assim: ''''Às vezes não é bem dia, às vezes não é bem noite. Às vezes não está quente, mas também não faz frio (....) Às vezes não acordamos, mas também não estamos dormindo.'''' Diferentes culturas geram diferentes padrões e essa introdução filosófica, segundo Scliar, é necessária para contar a história da metamorfose de uma larva, Tininha, que vive o dilema de se fixar à terra ou voar como uma borboleta. ''''O que me fascinou nessa idéia de metamorfose foi a possibilidade de discutir duas coisas importantes, a questão da identidade e a fronteira entre identidades, que não são tão nítidas'''', diz, concluindo que pretendeu com a história transmitir uma ''''mensagem de tolerância'''' para os pequenos, correndo o risco de construir uma parábola. ''''Evitar o didatismo sempre foi o grande problema das histórias infantis'''', diz, lembrando que os piores momentos de Pinóquio são aqueles em que seu autor, Carlo Collodi, liberando seu lado etnocêntrico e apegando-se à herança puritana, não resiste em dar uma lição de moral ao boneco de madeira - e, por extensão, aos pequenos leitores. Scliar deixa sua larva decidir o próprio destino e responder por sua escolha. Ao aceitar a proposta de um feiticeiro, interessado em expulsar as larvas de seu jardim, Tininha arrepende-se do acordo, mas já é tarde: o sentimento de traição ao semelhante eclode. Além do mais, passa a ser perseguida por um caçador de borboletas. Tratar de temas como saudade, solidão e metamorfose pode parecer excentricidade, mas não para grandes autores, bastando evocar, entre eles, o nome do inglês Ian McEwan, presente em outra coleção da Rocco (Grandes Autores para Pequenos Leitores) com o livro O Sonhador, sobre o conflito existencial de um pré-adolescente acossado por pesadelos. O escritor carioca Luiz Antonio Aguiar, outro autor da coleção Bichos & Outras Histórias, não vê nada errado em abordar temas adultos em livros dirigidos ao público infantil. Muitas obras concebidas para gente grande, como O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain, foram classificados sem nenhum problema como literatura infantil. ''''Sou plenamente favorável. Creio que muitas boas obras se fazem buscando uma perspectiva da criança diante do lado mais árduo da vida. A solidão, por exemplo, é um tema essencialmente infantil, para mim, já que a criança está sempre sozinha no mundo adulto'''', justifica. '''' Quanto à morte, é um mistério, um temor - perder pai, mãe, ser abandonada no mundo... Tudo isso gerou parte do que é o melhor da literatura infantil, como também a universal. Vide quantos órfãos há nos contos de fada, indo até Harry Potter'''', observa o escritor, que criou a simpática Dulcinéia de A Tartaruga e o Guerreiro. O livro fala do amor não correspondido entre o réptil e uma estátua de bronze de Dom Quixote, tão imóvel quanto a lenta Dulcinéia. O objetivo de Aguiar parece claro: estimular o jovem leitor a procurar os clássicos da literatura e ser tolerante com as manias algo estranhas não só de uma tartaruga apaixonada como de seus semelhantes. Ana Martins Bergin, a editora da coleção, conseguiu a adesão de mais três consagrados escritores para contar a história de seus bichos de estimação, as acadêmicas Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon e o dramaturgo Manoel Carlos. Lygia, naturalmente, vai contar a história de um gato que ela e seu falecido marido, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, adotaram. Nélida escolheu um bicho de fazenda, a vaquinha Miosótis. E, por falar em acadêmicos, o ocupante da cadeira número 3 da Academia Brasileira de Letras, Carlos Heitor Cony, já escreveu para a coleção. Seu livro, O Laço Cor-de-Rosa, fala de uma cachorrinha, Mila, adotada pelo avô de uma menina que sente ciúmes do animal, tratado com mimos de uma netinha. O escritor Richard Scarry (1919-1994), que usava animais em sua histórias infantis para combater estereótipos raciais, costumava dizer que as crianças se relacionam melhor com os bichos falantes das histórias que com outras crianças. Deve ser por isso que os escritores ingleses do século 19 inventaram asnos espertos e passarinhos para lá de tagarelas.

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