''Brasileiros resistem à condição de latinos''

Como não formam coalizões, os que vivem nos EUA lideram lista de deportados

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Junot Diaz não está resfriado. Ao contrário de Frank Sinatra, no lendário perfil de Gay Talese, que enfrentou a recusa do cantor em lhe dar entrevista, o ganhador do prêmio Pulitzer de 2008 gostaria de falar menos e escrever mais. O romance A Vida Breve e Bizarra de Oscar Wao, que a Record lança no Brasil em maio, catapultou o dominicano-americano para um nível de celebridade que, mais de um ano depois da publicação nos Estados Unidos, continua consumindo grande parte do seu tempo em contato com a mídia. Oscar Wao (sim, uma referência a Oscar Wilde) é gordo, nerd e consumido pela falta de sorte com as meninas. É também fissurado em ficção científica, com a esperança de ser um Tolkien latino. A história se passa nos Estados Unidos, para onde Oscar e Junot Diaz emigraram ainda pequenos, e na República Dominicana do ditador Rafael Trujillo. Por ainda não ter lido a tradução em português, posso apenas torcer para que tenha capturado a energia irresistível da linguagem híbrida deste romance de estreia de Diaz, descrita pela crítica do New York Times Michiko Kakutani como "Mario Vargas Llosa encontra Star Trek encontra David Fortser Wallace encontra Kanye West". O autor desta façanha literária estava um tanto subjugado quando recebeu a repórter no seu apartamento no East Harlem, o ?pied à terre? que ocupa quando não está dando aulas de texto criativo no Massachusetts Institute of Technology ou em turnê no exterior. Era uma tarde de entrevistas consecutivas que precedia uma noite de leituras no palco do 92nd Y. Como Oscar Wao, Junot Diaz sonha em ficar a sós com seus livros. Ele é um dos escritores confirmados para a próxima Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em julho. A ideia de escrever sobre um "nerd" latino veio quando você morava no México porque sentiu a ausência deste tipo de personagem na literatura. Eles não aparecem o bastante. Quando eu estava lá notei isso. Fosse o grafiteiro em Santo Domingo ou os "design kids" na Cidade do Mexico. Em todo lugar havia este grupo de jovens nerds que sabia tudo sobre comic books, sobre filmes esquisitos, liam ficção científica, parecia uma geração e um grupo perfeito para representar num romance. Você acha que a ausência desses personagens se deve a uma imagem de menor introspecção na cultura latina? Nós somos o que somos dentro da nossa cultura. Mas exibimos a visão mais simplista de nós mesmos. Seja o México ou Santo Domingo ou o Brasil, quase sempre exportamos expectativas pré-empacotadas, turísticas. Então a nossa ?intelligentsia?, nossos artistas, nossos excêntricos, as pessoas que são cerebrais e interessantes não fazem parte do pacote exportado mas elas existem e são muitas. Os brasileiros, por exemplo, resistem muito a esta classificação de latinos. Na minha experiência, nós, americanos, não temos nenhum problema de nos definirmos como americanos embora sejamos tão diversos como o Brasil - você encontra o mundo inteiro aqui. Toda a língua é estenografia, abreviação. O que me interessa é que dizer "americano", ou "latino-americano", é a primeira parte da conversa, o primeiro passo, não há nada errado. Quando você cria obstáculo a definições, a conversa morre ali mesmo. Sempre precisamos de generalidade para descrever experiências coletivas. Desde que as expressões genéricas não eliminem a capilaridade da nuance, do específico, não há problema. O que me incomoda é que todos querem ter tudo. Os brasileiros querem ser brasileiros quando ganham no futebol, quando é hora de acenar com a bandeira. E você sabe como os brasileiros podem ser nacionalistas. No entanto, pode colocar dois brasileiros lado a lado e supor que vieram de planetas diferentes. Há uma expediência política em selecionar a generalidade que queremos adotar. Mas você sabe que o Brasil não tinha tradição de grandes levas imigratórias até a década de 80. Vou ser muito específico. Eu dou aula , como você sabe, na área de Boston, que tem uma grande população brasileira. Os brasileiros fazem tudo para deixar claro que não são latinos. E estão sofrendo muito por causa disso. Num momento de vulnerabilidade como agora, quando a economia despencou, estão deportando brasileiros a rodo. Eles não construíram coalizões, estão isolados. Este solipsismo da natureza da identidade brasileira no contexto dos Estados Unidos, onde o que dá certo é construir redes, coletivos de grupos, voltou-se contra os brasileiros. Você vê isso em Massachusetts, a comunidade brasileira está sendo visada e não tem aliados. Uma vez você disse que que esta imagem de representante do imigrante é como carregar uma faca espetada no corpo. As pessoas sempre querem me perguntar sobre isto. Eu sou apenas um imigrante entre bilhões. O que a minha experiência pode dizer? Não sou um expert. O que é maluco nisso é que o romance não é sobre imigração, os personagens são imigrantes mas não discutem a sua condição de imigrante. Acabei de ser entrevistado por uma equipe de TV alemã, o cara me fez cinco perguntas sobre imigração! As pessoas querem que você, como artista, como dominicano, como imigrante e como pessoa de origem africana represente toda uma comunidade e isso é impossível. Você concorda com quem diz que, quando se emigra, deixa de ter uma terra natal? Eu sempre me senti como tendo duas terras e nenhuma simultaneamente. É uma vantagem e desvantagem. Às vezes, digo que minha casa é em Santo Domingo e nos Estados Unidos. Em outros dias, digo que não tenho casa. Na verdade, é muito raro uma pessoa viver uma vida unificada. Conheço dominicanos que só falam em Santo Domingo. Outros que não querem ter nada a ver com o país que deixaram. A sua origem não pré-determina o que o indivíduo vai escolher nos relacionamentos - com o país ou com as pessoas. Porque você se decidiu por narradores múltiplos para a história de Oscar? O livro precisava disto. Um livro faz suas exigências num nível inconsciente, é difícil descrever. Mais tarde, você tenta explicar. No fim das contas, é um livro que tem no centro o terror de uma pessoa falando - uma ditadura é um regime em que só uma pessoa fala. Então, uma das reações do romance é ter vozes múltiplas. O que você acha do debate na imprensa sobre quantos latinos devem fazer parte da administração Obama? Parece um sistema de quotas? Veja o que acontece quando não há sistema de quotas. Por que não há mais latinos no gabinete? Não me interessa o jogo tradicional da política partidária. Mas Obama ganhou por causa do voto latino. Então isto quer dizer que ele tem que recompensar os latinos. Os líderes que trouxeram os votos têm que ser pagos. É apenas como a política funciona. Porque nós estamos sendo destacados e identificados? Todos os brancos que ajudaram estão sendo pagos, com papéis, posições, postos de gabinete. Qual é a diferença? Quando se trata de grupos étnicos, as pessoas acham anormal. Mas quando se trata de brancos, eles são invisíveis. Está havendo nos Estados Unidos, e no Brasil também, o debate sobre a impunidade da tortura. O seu romance trata de vítimas de violência. Como um país deve lidar com esta memória? A gente não supera a memória se não enfrentar o problema. Pergunto: é esta a sociedade que queremos passar para os jovens? Não importa o quanto eu amo Santo Domingo, o quanto você ama o Brasil, eu jamais - jamais - ia querer cair nas mãos do sistema da justiça criminal dominicana ou brasileira, enquanto viver. E é insano nós dois pertencermos a países que são tão sinistros, violentos e repressivos. É pura loucura. Não vai acabar apenas se passarem leis. E não adianta profissionalizar as forças policiais. Só acaba se enfrentarmos os padrões sociais de cada país que promoveram a tortura. Tortura é uma fundamental veia desumana que passa em uma sociedade. Porque você gosta de ser professor? Complementa o escritor? Não, me toma o tempo para escrever. Não sei se me torna melhor escritor - consome tanto tempo... -, mas me faz me sentir mais humano. É maravilhoso me relacionar com alguém e perceber quando estou errado, ajudar gente. Às vezes você é relevante, às vezes importante. Tenho alunos de 17 até 40 anos. A maioria dos adultos não tem contato com jovens. O nível do que os alunos escrevem lhe deixa entusiasmado? O nível é bom mas importante para mim é ver os estudantes entusiasmados em aprender. Não estou tentando produzir grandes escritores. Estou tentando produzir estudantes com mentes críticas. Escrever é apenas o meio, ou a desculpa.

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