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Brasil, Argentina e seus leitores

Gabriela Pellegrino Soares revela dados inéditos da formação cultural desses países entre 1915 e 1954

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

"Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém." Por causa de frases como esta, inseridas nas cartilhas para meninas e meninos repetirem feito papagaios, que Graciliano Ramos, ainda criança, sofreu para aprender a ler: "Quem é este Terteão?" - perguntava, sem obter nenhuma resposta. O pitoresco episódio é um simples fragmento de algo pouquíssimo conhecido na nossa história: como se formaram os leitores brasileiros? Este é o tema do recente Semear Horizontes, de Gabriela Pellegrino Soares. Apoiada em meticulosas sondagens em fontes de dois países e numa fértil perspectiva comparativa, a autora analisa a formação dos leitores na Argentina e no Brasil, na primeira metade do século 20, dirigindo o foco da pesquisa não propriamente para a história da literatura infantil, mas para os principais personagens e instituições envolvidos nesta trama: os escritores, os educadores, os artistas, as editoras, as revistas e as bibliotecas. Em parte devido a maiores taxas de alfabetização, o mercado do livro na Argentina, desde o início do século 20, sempre possuiu maior densidade - pelo menos quando comparado ao brasileiro. Em compensação, no campo da literatura infantil, a Argentina não teve um personagem tão vigoroso como Monteiro Lobato, que, sozinho, emplacou, ainda em vida, 2 milhões de exemplares do conjunto de sua obra, o que só o equiparou, em termos de tiragem, ao escritor Hugo Wast, referência de sucesso no dinâmico mercado editorial argentino, cujos 33 livros publicados somavam, até 1946, 2 milhões de exemplares vendidos. Bem mais próximo do perfil de Lobato, só mesmo o editor e escritor uruguaio, radicado na Argentina, Constancio C.Virgil que, entre 1920 e 1950, inundou o mercado argentino com mais de uma dezena de populares contos e novelas infantis. Seu maior feito, contudo, foi criar a revista infantil Billiken, em 1919, talvez o maior êxito editorial entre as crianças argentinas - já que ainda hoje continua a ser publicada. Virgil possuía, contudo, uma visão mais centrada da criança, liberando-lhe a imaginação, mas também lhe aplicando alguns daqueles poderosos freios, sempre amarrados às finalidades educacionais. Como montar uma biblioteca infantil completa, afinada e adequada ao perfil dos seus leitores? Como administrar acervos e indicar as melhores traduções e adaptações dos clássicos estrangeiros? A experiência argentina começa em 1916, com a fundação da seção infantil da Biblioteca Nacional de Maestros, animada por Leopoldo Lugones. No caso brasileiro, as iniciativas serão bem mais tardias, mas o destaque será a organização da Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo, em 1935, durante a curta (e fértil) gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura. A figura analisada no livro é a de Lenyra Fraccaroli, que não apenas organizou o primeiro acervo da biblioteca como também desempenhou um papel central na história dos acervos infantis brasileiros. O livro também é importante por revisitar as fascinantes trajetórias de duas escritoras que se engajaram intensamente no campo da literatura infantil, como Gabriela Mistral e Cecília Meireles. Mas é toda uma série de outros personagens que se revelam e se envolvem na aventura da produção e difusão dos livros infantis. Aventura complexa e ainda fortemente ligada aos dilemas atuais. Todos pareciam acreditar, como Rousseau, que "a leitura é o flagelo da infância", porque, em certo sentido, é ela quem cria a vida adulta. Uns consideravam que o domínio infantil da palavra deveria passar por gradual controle, imprescindível à boa formação. Outros já achavam que a criança possuía suas próprias regras de desenvolvimento - assim como uma curiosidade, encanto e exuberância que não deveriam ser sufocados. Revelando aspectos inéditos da história cultural dos dois países, Gabriela Pellegrino documenta algo que, não raro, já esquecemos: ao prescrever o que queremos que uma criança venha a ser, dizemos também o que somos. De qualquer forma, com o advento de Perón e Vargas, se articularam estruturas de regimes ditatoriais nos dois países, que também afetaram a formação dos pequenos leitores: os escritores argentinos parecem ter sido bem menos subservientes às pressões ou à censura direta - pelo menos em relação a muitos dos seus confrades brasileiros - estes bem mais constrangidos pela sua difusa assimilação à estrutura conciliadora forjada por Gustavo Capanema, ministro de Vargas. O que também não impediu que tanto lá, quanto aqui, a censura, direta ou onipresente, mostrasse a extensão dos seus braços, também na área da literatura infantil. Na Argentina, os casos foram mais raros - em parte, devido à resistência dos escritores -, mas o peronismo fez questão de produzir, através dos livros infantis e manuais escolares, um imaginário folclórico e ufanista a favor do regime. Já na época de Vargas, obras consideradas perigosas para o regime simplesmente foram excluídas de acervos de bibliotecas públicas e de bibliotecas infantis. Era a única forma de censura direta, que felizmente durava pouco tempo, pois os livros excluídos acabavam chegando ao público através de outros canais e não apenas a partir do reduzido circuito das bibliotecas públicas. Foi o caso da História do Mundo para Crianças, de Monteiro Lobato, publicada em 1933, considerada "contrária aos preceitos educacionais por conter apreciações que admitiam dúbias interpretações". Mais difícil para a literatura infantil foi, contudo, competir com a retórica nacionalista e ufanista extensamente difundida através dos livros escolares - esses bem menos atraentes para os pequenos leitores. Que o diga Anísio Teixeira, o qual muito provavelmente conhecia a síndrome do "Terteão", pois, já em 1933, ele defendia enfaticamente que a verdadeira literatura infantil deveria ter radicalmente franqueada sua entrada nas escolas - a "verdadeira literatura", dizia ele, "e não o famigerado compêndio didático, aquele mal amanhado livro de ensino". Como seu amigo Lobato, ele acreditava que "Terteão" não era ninguém - não passava de uma pedante mesóclise - e que o livro infantil deveria, acima de tudo, constituir-se num autêntico "semeador de horizontes". Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de As Utopias Românticas

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