Boneca sapeca, levada da breca

Pia Fraus acerta em tudo ao transpor para o palco As Aventuras de Bambolina, um livro sem palavras de Michele Iacocca

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Por Dib Carneiro Neto
Atualização:

Uma história sem palavras, mas com muita dramaturgia. Assim é o espetáculo As Aventuras de Bambolina, que acaba de estrear em São Paulo, na disputada sala B do Teatro Alfa, com o veterano e premiado grupo Pia Fraus (expressão em latim que, conforme explica o cuidadoso programa, significa ''uma mentira contada com boas intenções''). O enredo toma como base o livro homônimo de outro veterano, o escritor, cartunista e ilustrador Michele Iacocca. Bambolina é uma boneca de pano, rejeitada quando sua ''dona'' ganha outra mais nova, industrializada, de plástico e que fala ''mamãe''. O livro e agora a peça contam as andanças dessa boneca rejeitada, passando de mão em mão até ganhar um destino feliz, relacionado à arte teatral. A escolha do livro foi acertadíssima. Essa trama simples está muito bem urdida no palco e de forma fiel às páginas da obra ilustrada de Iacocca (no catálogo da editora Ática). O conceito de rejeição é forte no universo infantil e, justamente por isso, integra os mais belos contos de fadas tradicionais. Aqui, todos os personagens que rejeitam a boneca acabam se arrependendo em seguida. Tentam reavê-la, mas é sempre tarde demais: já há outro dono em ação. E eis que aí entra outro conceito: o moto-contínuo. Com jeito de brincadeira, numa linguagem cênica bem característica do grupo Pia Fraus - o teatro físico que mescla circo (mágicas, palhaços), dança, máscaras, animação e mímica -, a garotada acompanha as mudanças na vida de Bambolina como uma metáfora para os ritos de passagem de seus próprios crescimentos, com todos os percalços do aprendizado social, rumo ao amadurecimento, às escolhas vocacionais, à felicidade. O tempo não pára e Bambolina é projetada para a frente, sem volta, a cada nova cena. A irreversibilidade de um gesto intempestivo faz parte da crueza de viver - e isso começa na infância, demonstra a peça. As diferenças sociais também terminam por virar um tema candente nas entrelinhas do espetáculo, na medida em que a boneca sai de uma casa de menina rica e vai ganhando novos donos, como um mendigo, duas crianças desabrigadas, um policial e até um lixeiro - e, o que é louvável, sem a necessidade de panfletagens ou falsos moralismos. Outro destaque é o emocionante tributo às artes cênicas em que se transforma a peça nos seus minutos finais, com referências à magia das representações e ao encanto das trocas de figurinos - são deliciosas as visitas rápidas pelo palco de personagens bem conhecidas da platéia, como Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho. Não falta nem mesmo um inteligente prólogo, em que as crianças são instadas, logo de cara, a ler algumas palavras básicas e a relacioná-las aos desenhos correspondentes. Ou seja, antes de começar a história sem palavras, a platéia é levada ao oposto, para que se estabeleça o contraste e se exponham as regras do jogo mudo que vai se descortinar em seguida. No elenco, Sidnei Caria (que assina a direção, ao lado de Beto Andretta, um dos fundadores da companhia, em 1984), Camila Ivo e Josafá Filho revezam-se em inúmeros personagens e técnicas de interpretação, demonstrando um rigoroso cuidado em não transformar versatilidade em exibicionismo, o que seria fatal para a fluência e o ritmo de uma dramaturgia que dispensa palavras para se apoiar na variedade de linguagens possíveis em cima de um palco. Repare na qualidade da trilha sonora original, a cargo de Guga Bernardo, que parece ter pesquisado muito, pois revela pleno domínio dos temas musicais relacionados, por exemplo, aos números circenses de outrora ou aos clássicos do cinema mudo. O apuro visual também impressiona, sobretudo no requinte dos adereços e na criatividade dos bonecos - desenhados pelo próprio autor do livro. Aliás, o cenário é ele próprio um objeto-livro, cujas páginas se despregam e viram painéis - demonstração eficiente de como cenografia é linguagem. O varal com diversos tipos de personagens teatrais é encantador. A própria Bambolina pendurada ao sol, em outro tipo de varal, para secar seu corpo de pano depois do banho, é uma das imagens mais poéticas da peça, no que ela contém de incitação às reminiscências do público adulto. A fantasia como alimento da alma também não poderia ganhar representação melhor do que a cena em que lenços coloridos vão saindo aos montes de dentro da barriga de Bambolina. E espere pela surpresa visual da última cena, em que esses lenços serão reaproveitados de um jeito simples, mas contundente. Em nome da magia teatral. Serviço As Aventuras de Bambolina. 50 min. A partir 3 anos. Teatro Alfa - Sala B (200 lugs.). Rua Bento Branco Andrade Filho, 722, tel. 5693-4000. Sáb. e dom., 16 h. R$ 20. Até 6/7

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