Bom descanso

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Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Alguém sabe explicar por que os manobristas, garçons, seguranças, porteiros, zeladores, ascensoristas e correlatos se despedem com a expressão "bom descanso"? Qual é a resposta adequada? 1. Espero ter. 2. Deus te ouça. 3. Depois desse porre... 4. Se o cachorro do vizinho deixar. 5. Rola aí um Dormonid? E se você estiver com o amor da sua vida, depois de uma noite ideal - cinema, restaurante, clima, suspense, sedução, pignoli no penne, merengue de morango e caipirinha de saquê -, não responderia "que nada, cara, agora eu quero me cansar"? "Pra você também" não funciona, pois o sujeito ainda terá horas de trabalho e, depois, vem a condução, que nunca chega na hora. Ele só descansará provavelmente ao amanhecer. Portanto, uma resposta pode ser: "Pra você também, se tiver sorte." Alguém sabe explicar de onde vem a expressão "pois não", depois que pedimos a atenção a manobristas, garçons, seguranças, porteiros, zeladores, ascensoristas e...? "Pois não" o quê? "Pois não estou ocupado e irei atendê-lo"? Alguém entende como no Brasil o seis vira meia em números de telefone? Sabemos que vem de meia dúzia. Então, por que o DDD de Aparecida, 12, não é dúzia? E de Angra, 24, duas dúzias? Por que só em números de telefone, bananas, laranjas e ovos o 12 é fator de divisão, numa sociedade regida pelo decimal? Poderia ser pior. Lembre-se dos franceses, que falam "60 dez" para indicar o 70, e "quatro vezes 20" para designar o simples 80. Sem falar dos americanos, que não usam zero, mas a letra "o", quando ditam um número de telefone. Sempre me fazem esta pergunta: o que dizer para os atores no fim de uma peça de que você não gostou, não entendeu nada ou, pior, em que roncou? Temos amigos ou parentes envolvido em teatro. Como o pai viúvo que encontrou ânimo, companhia e uma paquera não assumida (para os filhos) no grupo de teatro do condomínio. Ou a tia ex-dependente química de antiinflamatórios, eterna solteira, que não quer perder a juventude e faz teatro aos domingos no clube. Tem a filha hiperativa do amigo, que faz teatro infantil no grupo da escola, porque precisa aprender a ter limites. Sem contar os que fazem balé, dança e expressão corporal para emagrecer, e se apresentam no fim de ano num teatro reservado para a ocasião. Há muitos tipos de teatro feito por amadores: a encenação da festa de fim de ano da firma, o psicodrama, uma brincadeira de Natal, a dinâmica de grupo. Há o profissional (ou que se diz profissional), que convida amigos e parentes para estréia do espetáculo falado na língua do "pê", sobre a condição humana e a condução dos trabalhadores. É uma criação coletiva que levou três anos para ser levantada, graças ao dinheiro da família e apoio de duas pizzarias, exibida num espaço não-convencional: um buraco debaixo de uma ponte da Marginal do Tietê, onde antes morava um morador de rua com seus nove cães vira-latas, que foi atropelado na via expressa. O fato que saiu nos jornais e inspirou a diretora, que fez curso de teatro-socialista-bolivariano na Venezuela. Os pertences do antigo morador compõem elementos de cena. O público se acomoda com os nove órfãos, que não arredam os pés no palco, digo, as patas. Ao fim do espetáculo, minta. Não precisa dizer que amou, que mudou a sua vida, que eles conseguiram a síntese entre o fazer aristotélico e o não. Seja sutil e elogie um detalhe. Diga que os cachorros nem latiram. Que pareciam entender a peça. Que o público gostou. Que o espaço é realmente pouco convencional, mas de fácil acesso. Minta sempre. Artistas são sensíveis e vaidosos. Uma crítica estraga uma amizade. E você não quer deixar de ser convidado para um mico desses, que renderá muitos e-mails maliciosos com os outros amigos, quer? Dois exemplos de dramaturgia contemporânea provam a insanidade da tese de que o teatro morreu. A Festa de Abigaiu, de Mike Leigh (Teatro Augusta), e A Cabra Ou Quem É Sylvia?, de Edward Albee (Teatro Vivo), são dois espetáculos enxutos, com diálogos naturalistas e personagens identificáveis - podem ser seus vizinhos. Aparentemente levam uma vida como uma família igual a todas. Mas desembrulham segredos inconvenientes que indicam flagrantes da loucura humana, em poucas cenas, na sala de estar. A Festa de Abigaiu estreou em 2007 no Festival da Cultura Inglesa. Graças à repercussão e ao sucesso, não "consegue" sair de cartaz. A Cabra tem trilha, direção, elenco e cenário dignos do texto primoroso. Sim, é possível fazer bom teatro, provocativo, tocante. E atual! A nova dramaturgia brasileira está em cartaz com duas peças que provam a sua grande fase: Amor de Servidão, de Marília Toledo e Marçal Aquino (Teatro Aliança Francesa), baseada num trecho do livro Eu Receberia As Piores Notícias Dos Seus Lindos Lábios, e A Mulher Que Ri, de Paulo Santoro (Teatro Alfa), inspirada no conto húngaro Sete Krajcár, de Moricz Sigmond. Na primeira, o amor doente engessa a vida. Por isso, devemos fugir dele? Na segunda, a mãe, que tem muitas razões para se queixar, só ri e pergunta ao filho: "Você prefere uma mãe feliz ou coerente?" Nela, há a desesperada mensagem: alienar-se talvez seja a melhor saída. Marília Gabriela, depois de encenar a peça Aquela Mulher (Sesc Consolação), sai de carro pela garagem, sem cumprimentar os que a esperam. Muitos compromissos? Timidez? Aquela Mulher é um texto bem escrito de José Angalusa, que investiga (e sugere) o que se passa na cabeça de Hillary Clinton, mulher traída e humilhada publicamente, mas que perdoou o marido. Não consegui falar para Gabi que o cenário do filho dela é ótimo e que o texto me deixou intrigado: Hillary não perdoou porque é também ambiciosa e fascinada pelo poder e, assim, sai bem na fita e segue uma carreira política paralela? Na semana passada, Jô Soares teve no seu programa o bom senso que anda raro na histérica tevê aberta. No telão, mostravam as obras raras da Fundação da Biblioteca Nacional. Ao aparecer uma edição especial de Mein Kampf, de Adolf Hitler, ele simplesmente pediu: "Essa passa." Ufa.

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