Bistecas matam fome de desenhar

Comemorando o 3.º aniversário, Bistecão Ilustrado reúne mensalmente no Sujinho profissionais que se divertem trabalhando

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Por Livia Deodato
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A diferença crucial entre uma happy hour de empresários, consultores de RH, analistas de sistemas ou engenheiros e outra feita só por ilustradores não está na preferência do famoso bistecão servido no restaurante paulistano Sujinho, o prato da casa consagrado por unanimidade. Na última sexta-feira de cada mês, quem passa por lá após as 21 horas tem a impressão de estar observando um bando de crianças crescidas (ou adultos que você apostará que não tiveram infância) reunidas em duas extensas mesas: entre um papo, polentas e mussarelas de búfalas, as marcas d?água deixadas pelas cervejas sobre os papéis craft que recobrem as mesas servem de retoque final para uma princesa, um super-homem e uns alienígenas. O encontro batizado como Bistecão Ilustrado, que reuniu na última sexta quase 80 ilustradores - e o dobro de canetinhas hidrocor, lápis de cor e giz -, comemorou 3 anos de existência, com docinhos e bolo de aniversário. Profissionais da arte gráfica, desenhistas, designers e animadores, além de alguns estudantes interessados na profissão que mais parece brincadeira, marcam ponto no andar de cima do Sujinho uma vez por mês, para conhecer uns aos outros, conversar sobre o mercado de trabalho, repassar frilas, aprender sobre contratos, observar traçados que ganharam fama. O idealizador desse convescote se apresenta simplesmente como Kako, de 33 anos, há 6 deles como "ilustrador full time". Depois de muito ter insistido em trabalhar com design gráfico, webdesign e cinema, surtou e decidiu se dedicar somente ao que mais lhe dava prazer, a ilustração - ainda que isso implicasse uma troca permanente do horário diurno pelo noturno, uma dose adicional de puro deleite, já que garante ser das 22 às 7 horas da manhã o período que mais "funciona". "Ilustrar não é só desenhar, é conhecer e cuidar da sua própria empresa", ensina. De seus pais, herdou muitos cadernos e lápis de cores, um incentivo providencial para que ele e seu irmão, Bruno D?Angelo, de 31 anos (contratado pela Editora Abril e fã de histórias em quadrinhos), dobrassem seus cotovelos sobre rabiscos de gente grande. O Bistecão Ilustrado surgiu para mostrar que vida criativa pode, sim, existir no trabalho. E que o seu aprimoramento é ainda mais eficaz se juntar toda essa galera. "O encontro veio dessa necessidade de se conhecer outras pessoas, de se criar uma relação não só profissional, mas afetiva", diz Kako. "A boa formação de ilustradores no Brasil ainda é escassa. Existem muitos cursos, mas poucas escolas. Queremos reunir todo o pessoal, principalmente os iniciantes, para mostrar que dá para se viver de ilustração, principalmente se há troca de informações." Sem Kako, por exemplo, Hiro Kawahara, de 43 anos, não teria aprendido a formular contratos e montar o seu próprio estúdio. Hiro, quase formado em Biologia pela USP em meados da década de 80, tirava sempre nota máxima quando o dever era reproduzir o interior de uma mitocôndria ou de um sapo. Uma amiga, que também abandonou o curso de Biologia para estudar Editoração, soube de uma vaga de ilustrador na Editora Três e repassou a ele. "Na época, eu era só um rabiscador", garante. O teste seria desenhar um repolho e, minutos antes de entrar para a sala de entrevista, comparou a sua hortaliça com outra estampada numa revista. Certo de que o seu trabalho estava muito inferior, dirigiu-se ao banheiro e retocou as folhas da prima da couve que criou. "A água da privada me salvou", afirma seriamente. Há 14 anos, Hiro é o responsável pelas criações que fazem companhia aos solitários que vão comer Big Macs diariamente. Os papéis que forram as bandejas da rede americana de fast-food, e alcançam uma tiragem média de 12 milhões de cópias, carregam sua assinatura escondida no pêlo de um cachorro, em uma lousa, na placa de um carro. "É como brincar de Onde Está o Wally?", diz, mais uma vez com sério semblante, complementando que não fazia idéia do alcance de público que atingia até bem pouco tempo atrás. Mesmo caso de Fernanda Guedes, de 40 anos, uma das poucas mulheres num mundo essencialmente masculino por um acaso, quando foi convidada a ilustrar a abertura do programa Saia Justa, do GNT. "Trabalho há 16 anos na área, mas esse foi o mais emblemático por ter aparecido na TV." Montalvo Machado, de 42 anos, 24 deles no universo dos traçados, que se uniu a Kako na organização do encontro que já gerou descendentes em outras capitais brasileiras, como o Berbigão Ilustrado, em Santa Catarina, e o Trem Bão Ilustrado, em Minas Gerais, incentiva os interessados a trabalhar na área, defendendo a idéia de que o que falta não é mercado, mas sim qualificação. "É difícil, mas depois de um tempo os esforços são recompensados." Os primeiros a chegarem ao encontro de sexta, os estudantes Louise Cahino, de 22 anos, e Filipe Florentino, de 20, que pela primeira vez marcaram presença por lá, receberam proveitosas dicas de Montalvo sobre a arte de animação. "Ele disse que é uma área que está crescendo muito e o difícil é encontrar um profissional com esse conhecimento", conta , enquanto desenhava com finos traços uma princesa de cabelos ondulados e longo vestido num caderno emprestado. Por falar nesse material de trabalho, Montalvo havia preparado para a comemoração dos 3 anos do encontro quatro exemplares contendo desenhos criados nos papéis craft durante esses anos, produzidos artesanalmente sob um refinado acabamento. "Alguns conservam até as marcas das cervejas", mostra. Os cadernos foram sorteados à meia-noite, com outros trabalhos recém-criados em tábuas para bater carne, como a animação de um passarinho de um lado e uma gaiola do outro. "Com o dinheiro que sobra de encontros anteriores compramos utensílios para brincarmos nos próximos", conta Montalvo, referindo-se aos R$ 5 de contribuição pagos por cada participante do Bistecão. Esse talvez seja o único tipo de encontro que se prolonga até as 5 da manhã (como quando o ídolo-mor Benício, "aquele dos pôsteres de cinema", apareceu por lá no ano passado) com nacos de pães se transformando em bonequinhos mal-intencionados e onde conversar com os olhos baixos não denota tristeza, timidez ou falta de educação.

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