Bem-vindo seja Jorge Amado

PUBLICIDADE

Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Dois dos maiores ídolos, Chico Buarque e Caetano Veloso, dois autores de primeira linha, Milton Hatoum e Alberto da Costa e Silva. Todavia, o mais aplaudido, longa e emocionadamente aplaudido, foi o moçambicano Mia Couto. Cada dia se aprofunda mais a paixão dos brasileiros por esse autor excepcional e de uma modéstia sem par, mas texto, tema e atitudes consistentes. Isso aconteceu na terça-feira no teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, no relançamento das obras de Jorge Amado pela Companhia das Letras. Depois de anos de maus-tratos, com seus livros mal colocados no mercado, porque se julgava que Amado vendesse automaticamente, com edições produzidas sem esmero, Jorge retorna em grande estilo, como se dizia. Não só precisava, como merecia. Nós todos que escrevemos devemos um pouco a ele. Nós todos que lemos, também. Não sei quais foram as outras editoras que concorreram à licitação montada por João Jorge e Paloma, filhos de Jorge, preocupados com a obra do pai, para se reeditar Jorge dignamente. Os livros, que fizeram a cabeça de gerações e gerações e indignaram alguns críticos por não ser um autor difícil, nem hermético, nem intransponível, caíram nas mãos de Luiz Schwarcz, o homem que obrigou o mercado editorial a repensar modos e formas. Basta ver como se formatou a festa de terça-feira. Os mil lugares do teatro se esgotaram em incrível velocidade, quando as bilheterias do Sesc se abriram. Claro que havia atrações poderosas, mas essa é uma forma de saber fazer. Não havia jornal, emissora de tevê, revista que não estivesse lá. Uma festa que correu agradável, com ritmo, simples como Jorge era, sua literatura é. O que me emocionou foi ver o número de jovens na platéia. Muitos nunca leram Jorge. Vão ler. Também um dia se escreverá a história do Sesc na cultura brasileira. De uma instituição que era apenas prestadora de serviços, dava assistência social, organizava colônias de férias, ele se tornou um impulsionador da cultura como jamais ministério nenhum conseguiu fazer. Descontraída, informal, gostosa, a festa Amado foi marcada por momentos de humor. Chico Buarque contou seu primeiro encontro com ele em Salvador. Tinha feito um show na cidade, A Banda era um sucesso, ele se tornava conhecido. No dia seguinte, no aeroporto, na fila de embarque para o Rio de Janeiro, ele ouviu uma voz, Chico, Chico, Chico. Virou-se, deu com Jorge acenando, alegrou-se, até Jorge tinha vindo à sua procura. Jorge se aproximou: ''Já que vai para o Rio, pode me fazer um favor? Pode levar este pacote para a minha editora?'' Claro que, mais tarde, os encontros foram muitos. Hatoum, além de ser um estilista, provocou suspiros na platéia feminina com sua entonação, sua voz grave. Mia Couto contou coisa por nós jamais imaginadas sobre a influência de Jorge na literatura da África portuguesa. Quem ia imaginar que, por venderem Jorge Amado, livrarias foram fechadas pela ditadura salazarista? Cada autor brasileiro teve seu encontro com Jorge Amado. Pessoal ou literário. Generoso, ele jamais negou um prefácio a jovens escritores. Ele sabia que um prefácio não leva ninguém a ler um livro, mas dava seu aval. Se não faz bem, também não faz mal. Era humilde. Os grandes podem ser, não precisam exibir nada, são seguros, se é que alguém é seguro. Em 1974, recebi um telefonema de Salvador. Era Jorge. Tinha chegado de Roma e trazia uma encomenda da professora Luciana Stegagno Picchio. Era a edição italiana de meu romance Zero, que saiu primeiro na Itália, nenhum editor brasileiro ousara publicar, eram tempos bicudos. Luciana preferiu não enviar pelo correio, a censura fuçava tudo. Gilberto Mansur, editor da revista Status, estava em Salvador, foi até a casa de Jorge apanhar o livro, trabalhávamos ambos na Editora Três, eu fazia Planeta. Finalmente, chego ao início. Como comecei a ler Jorge. Aos 13 anos na Biblioteca Mário de Andrade, em Araraquara. Comecei com Capitães da Areia. Por ordens superiores emanadas dos mantenedores da moral, os livros dele ficavam numa gaveta. O bibliotecário Marcelo Manaia tinha ordem de entregá-los somente aos maiores de idade. Às mulheres, nunca! Porém, Marcelo era descolado, um libertário. Era só pedir, ele entregava o Jorge. Os livros traziam a marca de leituras anteriores, os palavrões sublinhados a lápis. A primeira leitura era rápida, virar página, ler palavrão. Depois, vinha a leitura verdadeira. E aí descobrimos o escritor que transformava em literatura o nosso jeito de ser e falar, escrevia sobre pessoas que podiam estar ao nosso lado, com nossas alegrias, angústias, nossa sensualidade, humor e aflições. Éramos nós que estávamos naqueles livros. Somos nós que ali estamos. E, agora, aqueles livros todos retornam, bem-vindos sejam! Vou recomeçar comprando A Morte e a Morte de Quincas Berro d''Água.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.