Bem mais longe do que Budapeste

Filme de Walter Carvalho é um mar de sensações que nos faz cruzar fronteiras

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Por Redação
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A transição da direção de fotografia para a direção de filmes faz parte da própria história do cinema. Os primeiros cineastas-fotógrafos foram aqueles documentaristas que, no início do século passado, se aventuraram em regiões que nunca haviam sido filmadas anteriormente, desvendando toda uma geografia física e humana desconhecida. Fizeram isso movidos por um desejo de nomear aquilo que ainda não havia sido nomeado, a câmera no ombro. Mas foi Stanley Kubrick quem tornou essa passagem de um ofício para outro realmente emblemática. Kubrick começou pela fotografia e logo no seu primeiro filme, A Morte Passou por Perto (Killer''s Kiss - 1955) acumulou as funções de diretor de fotografia, montador, produtor e diretor. Não é à toa que Glauber Rocha o qualificava como "discípulo de John Houston, com a febre criativa de Orson Welles". Mais perto de nós, alguns diretores de fotografia migraram para a direção realizando primeiros filmes brilhantes. Murilo Salles, responsável pela fotografia de vários filmes brasileiros nos anos 80, estreou na direção com Nunca Fomos tão Felizes. O filme representou o Brasil no festival de Cannes de 1987, selecionado pela Quinzena dos Realizadores. Narrativa de extrema delicadeza sobre as ausências e perdas irreparáveis sofridas nos anos de chumbo, Nunca Fomos tão Felizes é um dos melhores e mais originais filmes brasileiros das últimas décadas. Walter Carvalho ficou conheco como um dos mais importantes diretores de fotografia da Retomada, embora tenha começado a trabalhar no cinema bem antes disso, colaborando com seu irmão e documentarista Wladimir Carvalho, em filmes tão fundamentais quanto O País de São Saruê. Tive o prazer de trabalhar com Walter várias vezes, mas considero que a sua contribuição como fotógrafo atingiu seu ápice em Madame Satã, Lavoura Arcaica e Amarelo Manga. Nesses três filmes, a imagem está não somente a serviço da narrativa, como também lhe dá sentido. Esses filmes têm uma qualidade eminentemente sensorial, em parte graças ao trabalho excepcional de Carvalho. Sintomaticamente, o primeiro filme de longa-metragem que Walter Carvalho co-dirigiu foi um documentário sobre o poder e os limites da imagem. Realizado em co-direção com João Jardim, Janela da Alma convida o público para um debate sobre como "ver o mundo". DE UM SENTIDO AO OUTRO Em Budapeste, Walter Carvalho resolveu fazer da busca da palavra o tema da sua primeira viagem "solo" como diretor de filmes de ficção, após a bem-sucedida cinebiografia sobre Cazuza, realizada a quatro mãos com Sandra Werneck. O titulo do romance de Chico Buarque já nos convida a ingressar em um outro território: aquele representado por uma cidade, Budapeste, que em tudo parece distante de um Rio de Janeiro onde se passa a outra parte da trama. Um homem perdido entre duas cidades. Um homem ilhado entre duas mulheres. Nesse território onde a questão da crise de identidade é central, Carvalho nos transporta de um universo ao outro, de uma cultura a outra, sem nada impor ao espectador. Uma prova da integridade dessa busca talvez seja o fato de que as cenas mais marcantes do filme parecem ser aquelas em que Costa, o personagem central vivido por Leonardo Medeiros (excelente como sempre), ocorre num mundo em que ele nada domina, a começar pela língua. Não por acaso, a cena em que Costa está na casa de uma jovem mulher e de seu filho em Budapeste é uma das mais luminosas do filme. Sente-se o prazer que Costa/Leonardo Medeiros tem ao descobrir e sorver cada palavra de um novo idioma - e sentimos que Walter Carvalho está fazendo o mesmo por trás da câmera. Fernando Pessoa dizia que uma pessoa só conhece bem uma cidade quando se perde nela. É do prazer decorrente desse mergulho que o filme toma forma. Nesse sentido - e graças à sua intensidade - Budapeste é um filme único. É, talvez, um filme sem irmãos próximos no cinema brasileiro. Um filme que investiga aquilo que está além-fronteiras, não só da nacionalidade, mas também da língua, daquilo que nos torna singulares. Ao mesmo tempo, essa incursão em terras tão distantes nos mostra que as questões centrais que nos movem (o desejo, o conflito amoroso, a dor decorrente do desamor) independem da latitude onde esses sentimentos estão sendo vividos. Carvalho nos convida a acompanhar Costa nesse mar de sensações e acaba nos levando, como os primeiros cineastas que exploravam novos territórios, ainda mais longe do que Budapeste. Vale à pena conferir. Walter Salles é diretor de Central do Brasil e Diários de Motocicleta, entre outros Serviço Budapeste (Budapest, Brasil/ 2009, 113 min.) - Drama. Dir. Walter Carvalho. 16 anos. Espaço Unibanco 5 - 14h10, 21h40. HSBC Belas Artes 2 - 14 h

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