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Bandeira desdobrado

Homenageado pela Flip, poeta tem sua face de cronista, crítico literário e de artes plásticas destacada em livros lançados nesta semana

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Por Ubiratan Brasil
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O poeta Manuel Bandeira mantinha no Rio de Janeiro uma rotina saborosa - visitas a exposições de arte, encontros com artistas estrangeiros que passavam pela cidade, sessões de cinema para admirar a beleza de Greta Garbo, leitura de clássicos diversos, troca de cartas com escritores amigos. São os hábitos mundanos da sociedade carioca que se sobressaem de uma leitura ligeira de Crônicas Inéditas 2 (480 págs., R$ 69), segundo volume organizado por Júlio Castañon Guimarães com praticamente todos os 130 textos em prosa escritos pelo poeta entre novembro de 1930 e janeiro de 1944 e que a Cosac Naify lança nesta semana. Não é esse aspecto, porém, que interessa no livro. "O quotidiano carioca boêmio e musical ocupa parcela reduzida das crônicas", observa Guimarães, no posfácio da edição. Na verdade, acredita ele, as colaborações do poeta para a imprensa são peças de um amadurecido exercício, o desenvolvimento de uma longa, inteligente e refinada reflexão. Nascido no Recife, Bandeira (1886-1968) é o escritor homenageado da 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa na quarta-feira e, até domingo, terá uma série de eventos relativos à obra do poeta (veja no quadro ao lado). No rastro da celebração, além do segundo volume de crônicas, a Cosac Naify lança ainda Apresentação da Poesia Brasileira (504 páginas, R$ 69), projeto com que Bandeira pretendeu apresentar os poetas nacionais ao leitor estrangeiro; e sua tradução da peça Macbeth, de Shakespeare (208 páginas, R$ 49). A editora Nova Aguilar, por sua vez, prepara o lançamento da nova edição de Poesia Completa e Prosa (1.074 páginas, R$ 290), portentoso volume organizado por André Seffrin. Ele também é responsável por fixar a poesia de Estrela da Vida Inteira (Nova Fronteira, 464 páginas, R$ 69), que ganha novo projeto de capa e gráfico, além de vir com um CD de áudio contendo leituras de poemas pelo próprio Bandeira. Mais conhecido como poeta, Manuel Bandeira teve, contudo, um papel decisivo em outras áreas da cultura, como crítico literário e de artes visuais, professor, compositor, autor de histórias infantis e tradutor de clássicos da literatura - além de Shakespeare, traduziu Schiller e Proust. "Não vejo isso exatamente como confluência de estilos, mas como um trabalho no sentido de afinar-se consigo mesmo, aquela conquista solitária que é se encontrar na sua linguagem", comenta André Seffrin, em entrevista ao Estado. "Ele foi aos poucos descobrindo a própria voz, que, a partir de Ritmo Dissoluto ou de Libertinagem, assumiu seu perfil mais bandeiriano, a face, digamos, mais característica do Bandeira que conhecemos. E foi a partir dos anos 1930 que ele realmente se encontrou, inclusive como cronista, mais sintonizado com seus temas e sua linguagem." De fato, em Crônicas Inéditas 2, é possível notar uma preocupação mais detalhada sobre assuntos que escolhia como tema. Já no primeiro texto, Iniciação em Marcel Proust, Bandeira confessa seu fracasso inicial ao tentar (e não conseguir) ler a obra do escritor francês. "Há sempre que vencer os arames farpados das incidentes proustianas", justifica ele que, como Andre Gide, conseguiu depois ultrapassar tais resistências para então sentir "sua prosa de ritmo uniforme e toda amarrada de conjunções e incidentes restritivas ou explicativas, ?uma espécie de vida sentimental e contínua?". O volume traz ainda um importante questionamento crítico que, de certa forma, envolvia seu próprio trabalho - numa crônica sobre a poesia de Machado de Assis, Bandeira comenta ser arriscado igualmente para um poeta lançar-se à prosa. "Entra ele nesse caso numa competência muito mais ingrata que a dos seus confrades: a competência consigo próprio." E, como exemplo do dilema, ele demonstra que, apesar de uma dúzia de poemas apresentar a mesma qualidade de seus melhores contos e romances (como O Desfecho, Círculo Vicioso e Mundo Interior), era na prosa que o Bruxo do Cosme Velho aproximava-se da genialidade. Entretanto, apesar dessa distância, alguns poemas de Machado, principalmente Uma Criatura, anunciam o pessimismo irônico e o estilo nu e seco que dominaram a segunda fase do escritor. "Toda a sua amarga filosofia estava expressa e esgotada naqueles poucos e admiráveis poemas", escreveu o poeta. Leitor atento dos clássicos e dos novos, Bandeira sentiu-se à vontade, em Apresentação da Poesia Brasileira, para revelar um panorama crítico dos autores, escolas e movimentos que marcaram o gênero no País, de José de Anchieta ao concretismo. O homem certo para tal ofício, na avaliação do crítico Otto Maria Carpeaux, que assina o posfácio da obra. Para ele, poesia é a arte verbal de comunicar experiências inefáveis. "E a de Bandeira era a gravíssima doença (pulmonar) que lhe destruiu a mocidade, e a que, no entanto, conseguiu dominar." Assim, a poesia brasileira cruzava, naquele momento, com a expressiva realização da experiência pessoal de Bandeira. Para a segunda parte do livro, o poeta organizou uma antologia com 125 poemas de 55 autores, dos grandes clássicos, como Álvares de Azevedo, até bissextos, como Pedro Nava, e talentos em ascensão, como Ferreira Gullar. "Bandeira costumava ser muito claro e sincero em seus apontamentos, seja em matéria de jornal ou revista (em crônicas, em ensaios), seja na correspondência com amigos, em parte ainda inédita", observa André Seffrin. "Costumava apontar com extrema clareza o que a seu ver não funcionava num poema ou num romance. Ganhou alguns inimigos por conta disso." Era implacável também ao escolher textos para traduzir. Bandeira considerava Macbeth, "senão a mais profunda, a mais sinistra e sanguinária tragédia de Shakespeare". Em sua tradução, o poeta manteve os diálogos em verso, além de destacar, na introdução, expressões que considerava preciosas, como "uma história contada por um idiota, cheia de ruído e fúria e sem nenhum sentido".

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