Atos secretos

Sinopse

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Por Daniel Piza
Atualização:

Estou mais uma vez com o presidente Lula: o senador José Sarney não é uma pessoa comum. Uma pessoa comum não tem ilha e mausoléu, não pertence aos imortais da ABL, não fica no poder por mais de quatro décadas sem se indispor com ninguém, não é detidamente resenhado por Millôr Fernandes, não tem jornais e rádios em todos os cantos de um Estado cujo IDH está entre os piores. Uma pessoa comum também não tem "atos secretos" para dar emprego público para os parentes de primeiro, segundo e terceiro graus e não tem a honra de ter presidido o Brasil num golpe da fatalidade e de ter levado a inflação aos três dígitos. E uma pessoa comum sabe o que entra em sua conta bancária, embora saiba melhor ainda o que sai e o que não entra. E há quem continue chamando Lula de um político de esquerda... Quer posição mais favorável ao status quo do que as declarações dele em defesa de Sarney? O que ele disse, em outras palavras, é que os representantes do povo não são pessoas comuns, ou seja, do povo. São especiais, talvez eleitas pela voz divina (a voz do povo é a voz de Deus até terminar a contagem dos votos, depois deve se calar para a eternidade), e portanto merecem foro privilegiado, imunidade parlamentar, carteiradas, "praxes" que até ferem as leis que elas mesmas fizeram. Continuidade popular de FHC, Lula o imita na justificação verbal de alianças com o que há de mais retrógrado na mentalidade brasileira. Sarney, como foi ACM, é o facilitador dos projetos de permanência no poder. Quem menospreza Sarney como autor comete um erro ao ignorar uma peça literária como o discurso que ele fez na quarta-feira. Primeiro, porque é um exercício de imaginação que deixa longe livros como Saraminda - aquela obra-prima que conta a história de uma mulher com mamilos de ouro em Serra Pelada. Segundo, porque são centenas de linhas com apenas dois argumentos, ou melhor, duas alegações: a de que ele não é culpado, e sim a instituição que ele preside com a tal "crise da democracia representativa" (tradução: todos nós do Senado temos rabo preso, atire a primeira pedra quem nunca pecou com o dinheiro público); e a de que ele "exige respeito" por sua história (e sua versão singular de como não colaborou com o autoritarismo militar). Todos os males que Sérgio Buarque identificou nas raízes do Brasil frutificam ali. Por isso mesmo, os que apontam as oligarquias estaduais como barreiras para a democracia capitalista brasileira estão equivocados. Como o PT e o PSDB demonstraram, e como nossa vida cotidiana demonstra o tempo todo, o pensamento oligárquico - que confunde instituição e personalidade sempre que convém, que vê a crítica como um obstáculo em sua comunicação com os comuns, que se exime de qualquer erro e se gaba até do que não fez sozinho - vai muito além dos atos e palavras desses clãs de poder. Em graus diferentes, é aceito e reproduzido por quase toda a sociedade. Parafraseando Joaquim Nabuco sobre a escravidão, permanecerá por muito tempo como a característica nacional. CADERNOS DO CINEMA Um subproduto da ideologia cordial é o Fla-Flu dos debates no Brasil. O documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Cavito Leal, tem como mérito propor a superação disso, mas não consegue. É claro que Simonal merece o resgate, a anistia artística como cantor e "entertainer" que foi, pois podemos admirar os filmes de um Elia Kazan sem esquecer que ele colaborou com o macarthismo. O documentário está repleto de momentos que mostram seu talento, como o duo com Sarah Vaughan. E também não omite nada sobre as acusações que pesam sobre ele, embora haja mais documentos por aí; a cena da entrevista com o contador em quem Simonal mandou bater é bastante forte. Difícil alguém deixar de pensar mal dessas conexões com gente do Dops e de perceber que Simonal cavou boa parte de sua cova. Mas a maioria dos depoentes quer nos convencer de que ele foi o maior cantor brasileiro, o Pelé ou Garrincha do "crooning", e uma vítima de certa ingenuidade ou arrogância (e esta não seria permitida em um negro), não um delator. Sobre isto, os fatos ainda são obscuros, mas certamente Simonal sabia o que dizia quando se declarava a favor da "Revolução" (o golpe militar) e cantava País Tropical do modo como cantava. Mais importante: ele tinha voz bonita e swing contagiante, mas como intérprete não "roubou" nenhuma canção para ele, exceto o hábito folclórico de cantar Meu Limão, Meu Limoeiro em coro com a plateia. Não dá para igualar a Orlando Silva, João Gilberto, Tim Maia, Mário Reis, etc. Seja como for, o documentário é bom e levantou o tema. RODAPÉ O Futuro da América não é um livro como os que Simon Schama nos acostumou a ler de suas mãos. Ele intercala suas sensações diante da campanha de Barack Obama com episódios da história americana, como os dos pais fundadores, destacando Thomas Jefferson, e a luta embalada a jazz contra a segregação racial no século 20. Mostra as correntes contraditórias da política externa do país e as divergências sobre religião na independência, mas dá um voto de confiança no olhar futurista da "cultura da felicidade". Obama realmente dá um passo adiante em relação às dicotomias do passado recente - como se viu de novo nesta semana com seu pacote de regulação financeira, que desagradou a democratas (pois diz que "o livre mercado é o motor da economia americana") e republicanos (que reclamaram dos poderes dados ao Fed). Daí a sugerir que ele já tenha iniciado outro capítulo da história falta muito. Melhor é continuar lendo Philip Roth, de quem acaba de sair no Brasil (também pela Companhia das Letras) Indignação, que já comentei aqui. Como a crítica literária anda muito conservadora, sinto uma tendência a valorizar a veia de "romancista histórico" que Roth explorou a partir de Pastoral Americana. Mas essas novelas mais recentes são acima de tudo intimistas, retratos de homens de idade amargurados, com uma complexidade psicológica que, por exemplo, Chico Buarque não consegue atingir. Roth é um ficcionista da experiência americana, como ele mesmo diz, e nesse livro usa a Guerra da Coreia para mostrar pulsões fanáticas do velho puritanismo. Mas o que fica com o leitor é o estilo e a galeria, desde a obra-prima de humor Complexo de Portnoy até hoje. MINICONTO Um motorista de táxi se mudou para o interior de Minas. "São Paulo não dá mais pra mim. Vou criar minha filha num lugar mais tranquilo, onde posso pagar uma boa escola."Juntou-se ao sogro para vender águas. O amigo lhe comprou o carro à vista - para começar uma frota, mas também para ajudá-lo a financiar a nova vida. O que se foi sugeriu ao que ficou que também se fosse. O que ficou tentado e ficou de pensar. O que se foi ligava toda semana insistindo que ele se fosse. Ambos prosperaram, o que se foi com as águas e o que ficou com os carros. Durante dez anos só se falaram por telefone e torpedo. Até o dia em que o que ficou recebeu a mensagem do que se foi: "Minha filha vai estudar administração em sp. Vc pode falar com aquele seu cliente pra ver se consegue estagio?" Imediatamente a mente do que ficou se foi para o passado, lá onde sonhara um dia ir para a faculdade, se formar e ter uma filha. POR QUE NÃO ME UFANO Por falar nos entulhos do período militar, um deles, a obrigatoriedade de diploma de jornalismo para seguir a carreira, que era uma exclusividade brasileira, foi derrubado nesta semana. Há outros ainda. A taxa Selic está a 9,25% ao ano. Se continuar assim, logo fica menor que os juros que os bancos nos cobram por mês. Será que ninguém acha no mínimo curioso que a família Barreto produza um filme chamado Lula, Filho do Brasil para estrear em janeiro de 2010? Os anos 60 não terminam nunca? Basta ver Marilena Chaui e Antonio Candido falando para grevistas da USP, onde sempre pregaram o tal socialismo democrático, e do outro lado o governo estadual tratando tudo como se fosse caso de polícia. Troquem a agenda, por favor! Por que muitos bolsistas do ProUni vão bem na faculdade? Porque eram os melhores alunos das escolas públicas. Cotas para o mérito funcionam. Aforismos sem juízo O maior inimigo do palpiteiro é o generalista.

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