As sombras

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Por Verissimo
Atualização:

Três de cinco de dois mil e nove. As datas deveriam nos fixar no tempo como as coordenadas geográficas nos fixam no espaço, mas a analogia não funciona. Estar no terceiro dia do quinto mês do nono ano do terceiro milênio não nos dá a mesma certeza de estarmos em algum lugar, como dariam graus de latitude e longitude medidos de pontos fixos. O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta na Terra. Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza é que será sempre a mesma sombra - o que não é uma certeza, é um terror. Três de cinco de dois mil e nove. Domingo. Na nossa fome de coordenadas no tempo nos convencemos até que dias da semana têm características. Que uma terça-feira, por exemplo, não serve para nada. Que terça é o dia mais sem graça que existe, sem a gravidade de uma segunda - dia de remorso e decisões - e o peso da quarta, que centraliza a semana (pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou a frivolidade da sexta. Gostaríamos que passar pelos dias fosse como passar por meridianos e paralelos, a evidência de estarmos indo numa direção, não entrando e saindo da mesma sombra. Não passando por cada domingo com a nítida impressão de que já estivemos aqui antes. Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo, contentemo-nos com metáforas fáceis: o significado de estar em três de cinco de dois mil e nove é que o novo milênio se estende como um imenso pergaminho à nossa frente, esperando para ser preenchido. Podemos escolher nosso destino, desenhar nossos próprios meridianos e paralelos e prováveis novos mundos. É verdade que a passagem do tempo não se mede apenas pelo retorno dos domingos, também se mede pela degradação orgânica, e que a cada domingo estaremos mais perto daquela outra sombra, a que nunca acaba, suspiro e reticências. Nenhum de nós chegará muito longe no novo milênio. (Minha meta é chegar à Copa do Mundo de 2014, o que vier depois é gratificação.) Mas é bom saber que o novo milênio está aí, quase inteiro, à nossa espera. Nada a ver - ou tudo a ver, sei lá - mas feliz era Adão, o primeiro homem. Não porque estava no jardim do Paraíso, com tudo em volta para saciar sua fome e sua sede, mas porque não sabia do tempo e da morte. Vivia num eterno presente, num eterno domingo. O que vinha depois da passagem da sombra da noite não era o dia seguinte, era o mesmo dia, ou até o dia anterior, quem se importava? Adão, sozinho no Paraíso, era um homem feliz porque era um homem sem datas. Mas quando Deus colocou Eva ao lado de Adão, a primeira coisa que ela perguntou, ainda úmida da criação, só para puxar assunto, foi: "Que dia é hoje?", e ele sentiu que sua paz terminara. Ele era um homem no tempo. Um homem com um ontem e um amanhã, e um futuro estendido à sua frente como um imenso pergaminho, esperando para ser preenchido. O tempo não foi a única novidade trazida por Eva ao jardim do Paraíso. Foi ela que, dias depois, colheu o fruto proibido, que os tornou, de uma só mordida, sexuais e mortais. E foi depois de comer o fruto proibido, quando a Terra entrou na sombra da noite e os dois se deitaram lado a lado, que Adão sentiu seu membro, que ele pensara que fosse só para fazer xixi, se mexer. E avisou a Eva: - É melhor chegar para trás porque eu não sei até onde este negócio cresce. Depois de ganhar uma mulher e descobrir o tempo e sua mortalidade, Adão descobriu seu próprio corpo. Que semana!

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