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As raízes de um homem flutuante

Descendente de indianos, V.S. Naipaul tenta criar em sua obra um jeito de pertencer a algum lugar

Por James Campbell
Atualização:

O vilarejo no oeste da Inglaterra onde V.S. Naipaul vive há mais de 30 anos é assinalado por série de pontos apenas nos mapas mais detalhados. Não há placas para orientar os visitantes em estradas adjacentes, e nenhuma indicação na extremidade superior da trilha íngreme e rochosa que despenca para a casinha de tijolos vermelhos de Naipaul que mal se vislumbra no fundo além das fileiras de sebes e os buracos do caminho. ''''Sempre me considerei um estranho no país'''', diz Naipaul, ''''e isso não me causou nenhuma angústia.'''' Em sua primeira visita à Índia no início dos anos 1960, ele descobriu que havia se acostumado tanto com sua ''''estranheza'''' na Inglaterra que, quando entrou numa loja na Índia, esperava algum reconhecimento disso. ''''Quando não encontrei esse reconhecimento, me senti curiosamente esvaziado. Senti que devia fazê-lo da minha maneira, nas circunstâncias.'''' Ele se apressa em traçar uma distinção entre um escritor como ele - ''''que veio para cá atrás de calma para escrever'''' - e figuras como Anthony Powell e Evelyn Waugh ''''que se isolaram para se tornar O Escritor do País''''. As tentativas pessoais de Naipaul para moldar a maneira de pertencer são esboçadas em O Enigma da Chegada (Cia. das Letras, 2001), uma obra ambiciosa intitulada Um Romance em Cinco Seções, embora seja mais uma autobiografia que uma ficção. A casinha de tijolos é descrita, o caminho traiçoeiro (ele não melhorou), e os moradores locais, acolhedores mas inevitavelmente conscientes de sua dupla diferença. Mais de uma vez, em conversas, Naipaul se refere a si como ''''um homem flutuante''''. Mesmo em Trinidad, sendo um descendente de indiano, ''''sempre se estava meio que flutuando no mundo''''. Vidiadhar Surajprasad Naipaul nasceu em uma ''''comunidade indiana enraizada'''' na Trinidad rural em 1932, um de sete filhos. Seu pai era um jornalista do Trinidad Guardian e um escritor de contos que o filho promoveu. Quando Vidia ganhou uma bola para o University College, em Oxford, pai e filho mantiveram uma conversa por correspondência que Naipaul diz agora que foi sua única relação literária durante aqueles primeiros anos como imigrante. ''''Eu não tinha amigos estudantes com quem falar de literatura. Meu tutor era um homem realmente bondoso, muito cativante - mas não tinha nenhum critério literário.'''' A correspondência, publicada como Letters Between a Father and a Son em 1999, tem muitas observações do tipo: ''''Sabe, vou fazer sucesso como escritor... estou esperando uma coisa realmente grande'''' (tinha apenas 20 anos na época). A ambição, diz, era parte de sua personalidade, e ele escreveu sobre suas primeiras tentativas em ficção num quarto mal iluminado em Kilburn, norte de Londres, em papel surrupiado da BBC. A vinheta reaparece em livro após livro, como se não pudesse ser sublinhado o suficiente que o garoto de Trinidad que cresceu para ganhar o Prêmio Nobel teve que criar o chão embaixo de seus pés. ''''Eu realmente não estava equipado para ser um escritor quando saí de Oxford. Mas, aí eu resolvi aprender. Sempre tive o mais alto respeito pelo ofício. Sempre achei que era trabalho.'''' Aos 75 anos, Naipaul é mais afável do que algumas reportagens sugerem. Não é alto, e num dia quente de verão está vestido com calça e um casaco de tweed cinza. Sorri toda vez que sua esposa Nadira entra. Uma asiática queniana, ela trabalhou como jornalista no Paquistão. Eles se casaram em 1996, depois da morte da primeira esposa de Naipaul, Patricia. Sua crença em sua realização agora, ''''no fim'''', é tanto parte de sua personalidade como foi sua ambição fatalista nos primeiros tempos, mas ele exala a modéstia peculiar de alguém que dedicou a vida servindo a um talento. Os primeiros livros exploram a atmosfera tropical de Trinidad: O Massagista Místico (Cia. das Letras, 2003), Miguel Street e Uma Casa para o Sr. Biswas (Cia. das Letras, 2001), a homenagem característica a seu pai. Esses e 15 outros foram publicados pela editora de Andre Deutsch, na qual Naipaul teve um relacionamento frutífero com a editora sênior, Diana Athill. Ela escreveu sobre sua parceria profissional em suas memórias Stet - com indulgência, deleite, e muita exasperação. Naipaul era, evidentemente, o que os editores chamam de ''''um autor difícil''''. Referindo-se a ele como ''''um dos maiores romancistas em língua inglesa'''', Athill observa que, embora seus primeiros romances fossem marcados pelo humor, essa qualidade logo secou, e a obra posterior é ''''descolorida por falta do que costumavam chamar de espírito animal. Elas impressionam, mas não encantam''''. Nos anos 1950, Naipaul escreveu à sua mãe de Oxford. ''''Este país está cheio de preconceitos raciais'''' (ela havia escrito para ele: ''''Não se case com uma moça branca, por favor!''''), mas entre os escritores contemporâneos foi o primeiro a rejeitar no conjunto a política racial, e sua subdivisão de vitimização. Em The Killings in Trinidad, um longo e soberbo ensaio sobre Michael de Freitas, o autodenominado ''''Michael X'''' que assumiu o manto de líder negro em Londres nos anos 1960, Naipaul critica liberais brancos privilegiados que solapam a sociedade de que dependem seus privilégios. Freitas, que trabalhou como braço forte de chefões de favela em Londres, voltou para formar uma comuna em Trinidad, na qual alguns líderes foram assassinados. Rapazes descolados em Londres, diz Naipaul agora, ''''gostavam de jogar com esses rapazes negros''''. O ensaio, publicado em 1974, formou a base de seu romance Guerrilheiros (Cia. das Letras, 2001, esgotado), com o personagem Jimmy baseado em Michael X. ''''É muito atraente as pessoas serem vítimas. Em vez de terem de pensar na situação como um todo, sobre a história e seu grupo e o que vocês estão fazendo... se você parte do ponto de vista de ser uma vítima, você pega as coisas pela metade. Quero dizer, intelectualmente.'''' Apesar de sua crença de que um homem flutuante precisa mapear sua própria geografia, Naipaul admite sua boa sorte de começar como parte de um grupo de escritores caribenhos que estiveram em voga nos anos 1950 e 60, entre os quais George Lamming, que veio para a Inglaterra de Barbados no mesmo ano que Naipaul, Samuel Selvon de Trinidad, e Derek Walcott de Santa Lúcia. Sim, ele teve sorte de ter sido parte dessa ''''coisa nova'''', afirma. ''''Mas esses escritores foram se apagando, e a gente ficou sozinha de novo.'''' A exceção é Walcott, o tema do ensaio de abertura do mais recente livro de Naipaul, um conjunto de cinco ensaios chamado A Writer''''s People. É a primeira vez que Naipaul escreve sobre seu mais celebrado contemporâneo caribenho. O objeto do ensaio é uma coletânea de poemas, 25 Poems, publicada pelo próprio Walcott em Barbados em 1949. Naipaul começa recordando a excitação causada pela publicação, nas Índias Ocidentais, do livro de um escritor da região, e pela qualidade da obra. O jovem Walcott exemplificava aquilo que Naipaul mais valoriza em literatura: uma nova maneira de ver. ''''Fiquei extasiado de pensar que a paisagem que eu conhecia estava sendo vista por um homem com aquele tipo de talento. Lendo aqueles poemas, achei que poderia entender a importância que Pushkin teve para os russos.'''' O livrinho, que repousa numa estante perto da cadeira de Naipaul, é retirado e manuseado amorosamente, como se contivesse uma parte preciosa das primeiras lembranças de Naipaul. Na metade do ensaio, porém, o jovem poeta brilhante é visto se desenvolvendo em algo menos desejável, do ponto de vista de Naipaul: ''''Uma maravilhosa nova voz negra nos Estados Unidos... chamada das ilhas para ensinar em universidades americanas.'''' Uma reavaliação da amada primeira obra revelou o lugar de Walcott ''''na tradição da lamúria'''', do ''''ódio contra a gente branca''''. De repente, Walcott é classificado entre os que desejam explorar ''''a idéia do negro, o poço de mágoas, sempre disponível'''' onde ele poderia ''''se refrescar''''. No livro, Naipaul cita alguns escritores, de Camus a Coetzee, que estão ''''fatigados com o tema da raça, com suas inevitabilidades, suas pressões para fazer a coisa certa''''. De sua parte, Walcott em muitas ocasiões falou muito bem dos escritos de Naipaul - ''''Mesmo? Eu não sabia disso, sabe'''' - mas, também criticou em Naipaul ''''a repulsa aos negros... um aversão física e histórica que, como todo preconceito, desfigura o observador, não seu objeto''''. Confrontado com a citação, Naipaul faz uma pausa para considerá-la com seriedade: ''''Esse é um assunto muito delicado. Se você nasceu num lugar como Trinidad, onde há dois agrupamentos principais (asiáticos e negros), você recebe uma identidade racial. E a aceita. Rejeitar a identidade racial seria tolice. Acho que em todos meus escritos há essa aceitação de uma identidade. Eu nunca menosprezei ninguém.'''' Com O Enigma da Chegada, continuando pelas aventuras mais recentes de Ellie Candran narradas em Meia Vida (Cia. das Letras, 2002) e Sementes Mágicas (Cia. das Letras, 2007), Naipaul pareceu satisfeito de dar menos atenção do que nunca à natureza romanesca de sua obra. Ele acredita que a ''''narrativa em prosa'''' está sofrendo uma mudança, e que essa mudança é necessária. ''''No século 19, o romance nasceu de uma grande necessidade de descrever a sociedade. Eu descobri em mim uma falta de vontade de pegar um romance moderno. O que existe contra a forma é que qualquer um pode fazê-la, e acho que isso a desvalorizou, tornou-a tão óbvia que precisava haver outra coisa. A escrita interessante é feita sempre pela primeira vez.'''' Nos anos recentes, ele deu boas matérias para jornalistas criticando escritores como (E.M.) Forster e Powell - ''''Fiquei estarrecido'''', disse, com A Dance to the Music of Time - para não mencionar Waugh e (Graham) Greene, outra decepção. Em cada caso, suas objeções se baseiam na incapacidade do escritor de reabastecer seu material. ''''Já leu Things Fall Apart de Chinua Achebe? Acho um livro horroroso. É uma das coisas de que as pessoas falam, sem considerar. É uma peça de escrita primitiva sobre gente primitiva... e isso é uma coisa muito limitada. Essa coisa - o ritmo do ano, os rituais - você pode fazer uma vez, não o tempo todo.'''' Diz ainda: ''''Não tem havido escrita africana sobre a África, de uma maneira que eu compreenderia. Isto é, alguém tentando explicar para mim por que a África está uma bagunça. Será que a velha magia africana tomou conta de suas cabeças?'''' Quando lhe é colocado que ele é um escritor sem influência literária, concorda sem hesitar. Ele teve que fazer tudo sozinho, ''''nu e exposto''''. O escritor que mais tem admirado nos últimos tempos é Guy de Maupassant, uma descoberta relativamente tardia, feita durante uma doença há alguns anos. ''''Fiquei extasiado. Mas ele não foi uma influência em mim.'''' Isso conduz a uma história sobre como, antes de levar seu primeiro livro aos editores em 1955, comprou um romance de Somerset Maugham: ''''Só para ver se o Mestre tinha algo a me ensinar sobre narrativa, para me dar uma chance de reescrever meu livro antes de entregá-lo. Mas não.'''' O aprendiz imigrante concluiu que não havia nada para ele ali. ''''Eu sempre penso: bem, eles têm seu próprio material. Agora que estou tão longe de Trinidad, apenas um homem flutuando, tenho que lidar de novo com esse problema de qual material eu tenho.'''' TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK

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