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As pirâmides perpétuas de Faoro

Os Donos do Poder, cinquenta anos depois, ainda é análise precisa da permanência secular da estruturas de poder no Brasil

Por Francisco Foot Hardman
Atualização:

Ciosos de efemérides que nos redimam, por instantes, do esquecimento amplo, geral e irrestrito em que a sociedade da hiper-informação efêmera nos afunda, quase nos esquecíamos do cinquentenário dessa obra-prima do ensaísmo brasileiro: Os Donos do Poder, do jurista, historiador e literato Raymundo Faoro (1925-2003), que acaba de ganhar nova edição (Globo, 929 págs., R$ 94) Publicado originalmente em Porto Alegre, em 1958, é verdade que esse livro conhecerá seu maior impacto político e cultural somente a partir de sua segunda edição, totalmente revista e ampliada pelo autor, e isso certamente pela conjuntura que acompanhou sua reaparição, em 1973, no auge dos anos de chumbo. A ditadura militar tardava mais do que todos não só queriam, mas haviam previsto. Era preciso ler a cena com um sentido de compreensão mais largo no tempo e no espaço das relações sociais. Os Donos do Poder passou então a ser muito mais lido, pelos seus próprios donos e sobretudo pelos que falharam rotundamente em achar que sua conquista era questão de poucos anos ou de poucas armas. Pois de tudo que se diga desse notável gaúcho de Vacaria, uma coisa é certa: Faoro é um de nossos mais raros e brilhantes analistas da "longa duração", da permanência secular das estruturas do poder no Brasil, da continuidade infernal dos dispositivos retóricos e materiais do mando. Obra reescrita e atualizada sempre com maestria feita de fina erudição - em que se combinam cultura jurídica, histórica, filosófica, sociológica, literária (oh! já não se fazem juristas como antigamente) -, em pleno domínio de uma prosa densa, elegante, ciosa da lentidão que toda boa argumentação requer, foge a cada passagem, entretanto, de qualquer monotonia processual, pois é capaz de surpreender o leitor com imaginário verbal que emerge a cada passagem em belas e significativas metáforas. A permanência do subtítulo sugere a força de uma tese que foi ganhando mais atualidade com o passar das décadas: formação do patronato político brasileiro. O leitor de agora poderá se valer de uma 3ª. edição disponível da obra, saída em 2001 e com pequenas revisões ainda da lavra do autor, incluindo um bom índice remissivo e que já teve pelo menos 7 reimpressões até o ano passado. Ela contém o prefácio à segunda edição de 1973 e os dois capítulos novos ali inseridos, sobre a República Velha e sobre mudança e revolução na Era Vargas, focada no período 1930-1945. Mas quem quiser conhecer mais sobre o pensamento político e ensaísmo cultural de Faoro, um de nossos grandes militantes da Assembléia Nacional Constituinte nos anos 70-80, além de articulista prestigioso e polemista hábil nas páginas de Isto É, Senhor e, nos últimos anos de vida, de Carta Capital, deverá percorrer o excelente volume organizado por Fábio Konder Comparato, A República Inacabada (Globo, 2007). Nele se reúnem três importantes ensaios histórico-políticos de Faoro publicados antes avulsamente: Existe um pensamento político brasileiro? (1994); Assembléia Constituinte: a legitimidade resgatada (1981); e Sérgio Buarque de Holanda: analista das instituições brasileiras, este último em que se revelam claras afinidades entre esses dois críticos disfóricos das heranças luso-ibéricas em nossa formação. E quem, para além da análise dos impasses políticos brasileiros, quiser se aventurar ainda um pouco mais pelo espectro de possibilidades da obra desse ensaísta de primeira linha terá necessariamente que se deter nas mais de 500 páginas de seu livro Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio, editado de início na memorável coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, em 1974 e que chegou, até 2001, a uma 4ª. edição revista pelo autor (Globo), texto já nascido clássico, principal passaporte para seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, em 2000. Há interessantes pontes de travessia entre Os Donos do Poder e Machado de Assis. Pois neste, o que sobreleva é a visão negativa de uma sociedade fundada na dominação patrimonialista de fundo estamental, pirâmide de ascensão previamente bloqueada para os despossuídos de todos os tempos, pendularmente oscilantes no trapézio da precariedade social sem cidadania e sem nenhuma perspectiva de classe à vista. Ceticismo e pensamento distópico, Faoro inspira-se em Machado, de cuja obra tinha uma visão de conjunto como poucos, para diagnosticar um mal de raiz na formação histórico-social brasileira. Perdoem-me os leitores se cito aqui justamente as linhas finais de Os Donos do Poder, na versão completamente modificada pelo autor em 1973. Mas antes de contar o fim da história, talvez estivesse recontando o começo, pois Faoro, bem à maneira de Arnold Toynbee, enxerga na história luso-brasileira um círculo civilizacional interrompido, precocemente envelhecido antes de se desenvolver, retrógado antes de qualquer decadência, nessa viagem que curta-circuita os pólos do patrimonialismo privado e do estamento público-burocrático-estatal, viagem redonda porque quadrada, vale dizer, emparedada, nos muros da pirâmide e nas quedas inevitáveis do trapézio. Essa social enormity (Toynbee), que o autor preferiu, na edição original, traduzir por "monstruosidade social", encobre a autoreprodução de velhos mecanismos de dominação e instituições anacrônicas: "Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante." Salvo engano, Faoro esteve entre os primeiros autores brasileiros a incorporar o crítico norte-americano M. A. Abrams, autor de The Mirror and the Lamp (O espelho e a lâmpada, 1953) em sua análise cultural-literária, em que a interpretação subjetiva é parte da cena representada em cada objeto artístico-poético, porém dentro de limites dados pelo próprios instrumentos da linguagem e da realidade apreendidos, fugindo tanto do objetivismo naturalista quanto do impressionismo ultra-romântico. Já na análise social, o aproveitamento engenhoso que faz de Weber (método da compreensão subjetiva dos valores culturais postos em cada sociedade e período histórico, fundamento de uma nova objetividade não positivista e não arbitrária), trouxeram, em Os Donos do Poder, um sopro novo às leituras do Brasil. Faoro criticou dualismos presentes tanto em análises liberais quanto marxistas da realidade brasileira. Em seu tempo, foi em parte mal compreendido. Mas sua capacidade de diálogo crítico transcende qualquer "escola de pensamento". Ao mesmo tempo em que, por exemplo, indica com precisão que a teoria trotskista do "desenvolvimento desigual e combinado" reintroduz o dualismo e a visão unilinear e etapista dos modos de produção, retoma com justeza a expressão marxiana "Le mort saisi le vif" (O morto agarra-se ao vivo) para enfatizar a permanência das estruturas mais longevas do poder social concentrado num super-Estado que, reproduzindo arcaísmos, trafega plenamente, desde logo, na ordem capitalista. Se vivo fora, esse mestre do radicalismo democrático estaria perplexo diante dos exemplos mais recentes de permanências expressivas das estruturas do patronato político entre nós. No governo Lula, no Congresso e no STF, sucedem-se os casos de completa impermeabilidade piramidal às demandas sociais reformistas mais urgentes. Os mandões de ontem continuam mandando. E os excluídos de sempre continuam a luta no fio do trapézio. Mas Os Donos do Poder poderia igualmente iluminar, nesses tempos globais, para além das especificidades nacionais (jamais Faoro pensou em isolá-las como essências), a continuidade burocrático-estamental de estruturas de poder opacas em sociedades próximas como México e Argentina e, com as devidas mediações, em sociedades mais distantes geografica e historicamente, porém, a rigor, semelhantes na preservação de dispositivos das antigas violências estatais com as antigas e novas formas abissais da desigualdade: Rússia, China e Índia. Mostrando que os rumos do capitalismo assumem formas inteiramente insuspeitadas por seus primeiros críticos. Francisco Foot Hardman é professor de teoria e história literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

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