As armas vão estar assinalando os barões *

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

"Passageira Fulana de tal, favor indentificar-se com os comissários." O anúncio, proferido por um comissário de bordo brasileiro no vôo São Paulo-Nova York, concluiu uma viagem de dez dias a um Brasil onde a língua poderia ser colocada sob a proteção do Ibama ou de alguma ONG internacional. Num momento em que americanos e europeus, enamorados da coisa brasileira, fazem esforço para nos entender melhor - um sinal revelador é o número de cantores estrangeiros gravando na língua de Camões -, estamos comprometendo a nossa indentidade, falando e escrevendo cada vez pior. O gerúndio viral, depois de escapulir de manuais corporativos mal traduzidos do inglês, transforma funcionários que lidam com o público em robôs a repetir frases sem o menor sentido. Logo depois de chegar a um hotel, perto do aeroporto de Guarulhos, ouvi várias frases dessas que massacram a expressividade colorida do brasileiro: "Eu vou estar mandando uma pessoa para consertar a TV." "Eu vou estar pedindo um técnico para a internet." Será que o ministro Temporão não pode combater a dengue com o gerúndio epidêmico? O verbo haver, banido do Planalto, está sumindo até de textos jornalísticos, onde há cada vez menos e tem cada vez mais. Translations (Traduções) é uma peça escrita em 1980 pelo maior dramaturgo vivo da Irlanda, Brian Friel. Assisti a uma bela montagem em 1995 e saí tocada pela metáfora do poder da língua como instrumento de resistência, identidade e libertação. No século 19, em que se passa Translations, enquanto a ocupação britânica trabalhava para eliminar o gaélico, os empobrecidos irlandeses eram milionários vernaculares. Mandavam ver não só em gaélico, mas também em latim e grego. Sinto embaraço quando escorrego e traio os anos de exílio voluntário, cometendo um anglicismo, como pedir pão torrado com o queijo de Minas "do lado" (on the side). Brasileiros que emigraram para os Estados Unidos revelam sua escolaridade mais precária quando dizem frases como "estou suposto de chegar cedo", tradução literal do inglês que resulta na frase incorreta. De que adianta convidar Angola, Moçambique e Guiné-Bissau para reuniões da Comunidade de Países da Língua Portuguesa se estamos formando gerações engessadas pelo uso indigente do nosso português? Assim como a paranóia infantil com o interesse americano na Amazônia corre paralelamente à destruição da floresta pelas nossas mãos, o português falado por 190 milhões de brasileiros não precisa de defesa ufanista e sim de militância preservacionista. O português do presidente Lula não ficou na quarta série porque ele era pobre e precisava trabalhar. Nos 20 anos em que se preparou para ser presidente e não foi pobre, ele desprezou a importância da língua para elevar a vida da população que representa com a legitimidade de seus 58 milhões de votos. Ao refutar os intelectuais de esquerda que preferiam vê-lo fantasiado de trabalhador, ele podia ter prestado um grande serviço ao povo brasileiro decidindo que ia estender o talho fino de seus ternos à sua fala. Em 1780, John Adams, um dos fundadores da república americana e mais tarde o segundo presidente do país, escreveu de Amsterdã uma carta ao Congresso prevendo que o inglês ia substituir o francês como língua mais falada no mundo. Na carta, ele sugeriu a criação de uma Academia Americana para promover o bom uso do inglês porque, argumentou, a eloqüência da linguagem tende a ser mais refinada nas democracias. O dilema falso entre a educação e a saúde foi lembrado em toda sua tragédia num relatório da Universidade de Harvard na semana passada. A morte prematura de 365 mil pessoas na África do Sul foi selada pela decisão genocida do recém-defenestrado presidente Thabo Mbeki de impedir a distribuição de remédios anti-retrovirais. Mbeki ignorou o conhecimento científico mundial sobre a causa da aids e permitiu que sua ministra da Saúde gerisse um programa de tratamento à base de alho, limão e raiz de beterraba. A ignorância cultivada, como sabemos, produz muito mais do que erros de concordância. A conta do folclorismo é paga pelos mais vulneráveis. A loja A Time For Children, em Manhattan, treina vendedores adolescentes acolhidos pela fundação Children?s Aid para atender o público. Entre outros atributos, os jovens, a maioria negros e latinos, aprendem a falar corretamente e a ir além do dialeto de seus guetos para aumentar as chances de cursar universidade e escolher uma profissão. * Sugiro um teste: pergunte ao professor ou professora de seu filho ou sua filha adolescente se reconhece de imediato estas palavras: As armas e os barões assinalados/ Que, da Ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca dantes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana/ E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram. Se a resposta for negativa, argumente que um educador que se preze não pode desconhecer o épico fundador do português moderno. E mais não explique. Google-se o autor. Linguagem é poder.

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