As ambiguidades da obra e da vida

Em O Olhar de Borges, Solange Fernández Ordóñez mostra o apreço pelo Oriente do escritor argentino que buscou o absoluto

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Assim como é aconselhável desconfiar da realidade, é bom suspeitar de tudo aquilo que vem de Jorge Luis Borges. Sua obra encarna uma convicção cara ao escritor argentino, que completa 110 anos de nascimento em 24 de agosto: "Tudo é e não é." Esse foi o ensinamento que ele aprendeu com Sidarta Gautama (563-483 a.C.), o Buda, ou Buddah, como preferia escrever. "A importância do Oriente na obra de Borges é muito profunda e intensa", diz Solange Fernández Ordóñez. "E não tanto pelas ideias em si mas pela singularidade com que se tratam certos temas." Solange é autora de O Olhar de Borges - Uma Biografia Sentimental (Autêntica, 248 págs., R$ 32), traduzido por Cristina Antunes. Ela começou a trabalhar na obra nos anos 1990. Teve acesso privilegiado a cadernos de anotações de Borges, presente dado pelo escritor, nos anos 1970, a seu advogado, Carlos Fernandez Ordóñez, o pai de Solange. Três meses depois de ser presenteado, Carlos morreu, e o acervo foi repartido entre os herdeiros: hoje estão na Fundação San Telmo para consulta de estudiosos. Pela lei, o conteúdo dos manuscritos não pode ser reproduzido, e o jeito foi Solange falar deles por meio de suas lembranças, ampliadas pela fita em que ela gravou uma visita feita à mãe de Borges, dona Leonor, nos anos 1960. A convivência com Borges, iniciada na mesma década no imóvel da rua Maipú, 900, é outra fonte preciosa para a biografia. "Os manuscritos mostram a imprescindível colaboração da mãe: aparece a letra dela como continuação da letra do filho, ela anotava a continuidade do pensamento de Borges que cansava de escrever e ditava os escritos." Muito discutidas por estudos, as fontes poéticas e filosóficas de Borges estão registradas nos cadernos. O livro de Solange destaca o apreço do escritor argentino pela cultura oriental e pela mitologia. "Em suas anotações se encontra muitas vezes a seguinte frase: ?Que é o Ganges? É uma margem, são as duas margens ou é a água??" O filósofo Heráclito, autor da frase segundo a qual o mesmo homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio, é outra menção recorrente. Aqui Borges se detém sobre as horas que passam. "O tempo é o tema que dá o eixo de toda a sua obra", ela diz. "As águas fluem, iguais à vida, e lembram que, com isso, se produzem mudanças nos homens." Mas essas modificações não impedem que o artista perceba a eternidade no instante. Nos cadernos borgianos está a seguinte frase de Marco Aurélio: "Quem viu as coisas do presente viu todas as coisas, as que foram e as que serão." Afirmação a que se adiciona a crença budista, incorporada pelo autor de Ficções, de que o passado é eterno e o futuro, infinito. Aqui se desvenda a busca de um escritor pelo absoluto: ao dispensar o acessório, ele queria chegar ao coração das coisas. Não à toa, diz a autora argentina, criadora da Fundación Internacional Jorge Luis Borges, Coleridge é "o escritor supremo" para o autor de El Aleph. Borges absorveu do ficcionista inglês a teoria dos pesadelos - segundo Solange, o argentino afirmava que a origem da criação reside nos sonhos. E repetia várias vezes uma reflexão de Coleridge: "Se um homem atravessasse o paraíso em um sonho e lhe dessem uma flor como prova de que esteve ali, e se ao acordar encontrasse essa flor em sua mão... então, o quê?" Depois de falar do tempo, Solange cita a importância do labirinto para a ficção borgiana. Esse emaranhado de caminhos simboliza a ambiguidade do real, rejeitada pela cultura do Ocidente. "O homem ocidental tem dificuldade de assimilar o paradoxo." Borges era amante das contradições, nas quais percebia a unidade - o labirinto, ao mesmo tempo que simboliza o caos, tem um centro que inspira a esperança de uma ordem. Solange lembra que, desde pequeno, exercendo a plasticidade mental comum às crianças, Borges aceitou o incerto e o imprevisível da existência. "Não será por que nossa vida é fantástica que a literatura fantástica nos comove?", ele dizia. Seu apreço pelos mitos - fadas e monstros lhe despertavam especial afeição - arranha a imagem de um escritor extremamente cerebral, perdido em abstrações que rejeitavam preocupações humanas. Solange aborda facetas reveladas por outras biografias. Ela mostra a importância da biblioteca paterna na formação de uma criança tímida, que precocemente descobriu sua condição solitária de artista. Segundo a autora, Jorge Luis Borges foi a experiência viva da literatura. Com sua obra ele fez a vida ser mais do que uma aceitação passiva da passagem do tempo. "Creio que o sentido da obra de arte é abrir a mente e os corações para entender melhor o difícil processo de viver."

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