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Artista mineiro pinta com a terra do Vale do Jequitinhonha

Escolhido pela ONU para representar o Brasil, Leandro Júnior retrata mulheres da região e abre 'Viúvas de Maridos Vivos', em São Paulo

Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

A terra simboliza a vida. Força nela contida, o cultivo, o plantio, para muitos, a esperança. Dos significados que adormecem no solo, o sagrado é um dos que se diluem na trama de quem se põe a manipular a matéria, como o artista plástico mineiro Leandro Junior, que abriu sua primeira mostra individual no Museu de Arte Sacra, em São Paulo.  A exposição Viúvas de Maridos Vivos, com curadoria de Simon Watson e que fica em cartaz até o dia 5 de junho, é também uma investigação social. O artista parte de retratos de mulheres que precisam tocar a vida longe dos companheiros, histórias que se cruzam com a do menino que um dia se viu longe do pai.

O artista mineiro Leandro Júnior faz suas próprias tintas e argilas para uso em pinturas e esculturas Foto: Leandro Júnior

“Eu sou filho de uma dessas Viúvas de Maridos Vivos, que são histórias comuns na região onde eu cresci”, conta ao Estadão o artista, que é de Chapada do Norte, um dos municípios que fazem parte do Vale do Jequitinhonha.  Hoje, morador de São Paulo, Leandro se mantém ligado à sua terra, faz suas próprias tintas com pigmentação natural. “Eu tiro o torrão da natureza para moer, refinar. Quanto mais tempo o barro estiver temperado, menos ele racha”, explica, quase como um alquimista que procura no solo natal as cores de suas pinturas e esculturas.  Aos 37 anos, o artista, que já expôs em Nova York, se lembra dos trabalhos sociais em Chapada do Norte e região. Sem apoio do poder público, em 2016, ele resolveu se mudar para o Quilombo de Cuba, no Vale do Jequitinhonha, depois de notar interesse das pessoas da comunidade, que viajavam para tomar suas aulas na cidade. 

A exposição traz ecos do passado do pintor, criado pela mãe, que teve história parecida com as protagonistas da mostra Foto: Leandro Júnior

A procura por suas aulas fez com que o jovem artista se tornasse um aprendiz. No Quilombo de Cuba (nomeado assim em homenagem a um escravo, traços da herança colonial), a comunidade se mobilizou para que as oficinas acontecessem, de início, improvisadas. “É bonito lembrar que começamos com um projeto debaixo da sombra de uma árvore. Depois, o pessoal do Quilombo foi arrumando mais estrutura, fornos para queimar o barro. Eu [EU]queria resgatar a identidade do lugar, que tem uma tradição rica em cerâmica, com os potes de barro e utensílios”.  Pintadas a partir de composições feitas com barro, em 2019, Leandro resolveu retratar histórias das mulheres que viviam sós, sem os maridos, ausentes por meses com os trabalhos de boias-frias no campo. Reminiscências marcadas na pele, Leandro resolveu levar essa figura de resistência dos Quilombos, a força da mulher que lá existe (carregando pesadas latas de água na cabeça, trouxas de roupas para lavar na beira do rio, como mostram suas pinturas) ao mundo. 

As mulheres do Vale do Jequitinhonha foram retratadas em seus cotidianos, muitas delas carregando fardos Foto: Leandro Júnior

Divulgava seu trabalho na região mandando registros de suas pinturas para televisões, rádios e jornais locais até que fosse visto. Seu sonho é promover o Vale, cuja terra, sinônimo de luta, também passou a significar dor, haja vista as explorações e catástrofes que giram em torno desta palavra no País. Seu trabalho evoca o sofrimento do povo do campo, um Brasil profundo, como nas famílias retratadas por Portinari. Na escultura, Leandro Junior segue a tradição das ceramistas da região, como Maria Lira Marques, pioneira no trabalho com a terra do Jequitinhonha.  “A partir desses retratos, o mundo pode conhecer a força da mulher que resiste, só, e carrega o fardo”, afirma o artista.  Escolhido pelas Nações Unidas para ser o pintor brasileiro que vai retratar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, Leandro deixa suas pegadas como uma bonita caminhada revertida, ao longo dos anos, em melhorias, políticas públicas, para o Quilombo de Cuba. Sua arte conseguiu trazer visibilidade à comunidade, erguer um centro cultural e alocar médicos à região. Ciente do impacto positivo, o artista volta sempre às origens, para não esquecer a terra em que um dia pisou e para sentir-se em casa, com os pés no chão.

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