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''''Arte tem de ter relação com a ética''''

Na sua obra, obsessão pela morte convive com o fascínio pelas mulheres

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Ingmar Bergman realizou seu primeiro filme em 1945, portanto, há 62 anos. Crise não obteve muita repercussão fora da Suécia e, para dizer a verdade, nem no país em que Bergman nasceu a recepção foi muito calorosa. Bergman foi internacionalmente descoberto no Uruguai, por um crítico chamado Homero Alsina Thevenet, no começo dos anos 50. O Brasil logo se associou ao culto e, em 1954, o Festival Internacional de Cinema de São Paulo, em comemoração ao quarto centenário da cidade, exibiu justamente Noites de Circo. O jovem Walter Hugo Khouri tornou-se um devoto do autor sueco, num momento em que o cinema brasileiro pré-Cinema Novo estava voltado para o neo-realismo italiano. Quando começou a fazer seus filmes, influenciado por Bergman, o próprio Khouri ganhou a etiqueta de ''''sueco'''', o que em bom português daquela época queria dizer - alienado. Seria o próprio Bergman alienado? Não, mas Ingmar tinha a Suécia para dar sustentação ao seu projeto de cinema autoral. Filho de um pastor luterano, ele recebeu uma educação severa. Desde garoto, amava as lanternas mágicas e os teatros de marionetes - que aparecem em Fanny e Alexander e a primeira dá título a seu livro autobiográfico (Lanterna Mágica), em que ele conta tudo. A rígida formação familiar, a paixão do teatro, do cinema e das mulheres. Bergman poderia ser definido como um homem que amava as mulheres, mas, no cinema, o título já pertence a François Truffaut. Amava-as tanto que se casou cinco vezes, além de todas as outras com quem simplesmente ficou. As mulheres sempre foram complicadas, na vida como na obra de Bergman. Mesmo depois de descasado, ele as mantinha - o caso mais notório é o da norueguesa Liv Ullman - integradas ao seu elenco. Não por acaso, foi um dos maiores criadores de personagens femininas da história do cinema. Todo ano-novo, por mais de 70 anos, Bergman cumpriu o mesmo ritual. À revista francesa Positif, ele revelou que seu réveillon se repetia sempre da mesma maneira. Tomava uma taça de champanhe e sentava-se no seu cineminha particular, um luxo a que se permitiu, mantendo cópias em 35 mm de obras que considerava fundamentais, para assistir a seu filme favorito - A Carroça Fantasma, de Victor Sjostrom, de 1920. Sjostrom era supervisor artístico da Svensk Filmindustri, entidade mantenedora do cinema sueco, quando Bergman lá entrou, nos anos 40, como roteirista. Sjostrom deu força ao aprendiz e Bergman, mais tarde, retribuiu, fazendo dele o Professor Isak Borg de Morangos Silvestres (e o filme começava, na cena do sonho, por uma citação à Carroça Fantasma). O próprio fato de ele gostar tanto desse filme silencioso já é revelador - a carroça fantasma é aquela em que a Morte vem recolher as pessoas. A morte foi sempre uma obsessão de Bergman. Até como decorrência disso, Bergman, o filho do pastor, era obcecado pelo mistério - o que existe depois da vida? Deus existe? Essas questões metafísicas foram transformadas em temas e o cinema de Bergman trata da fome e o sexo, a fome de sexo, além do silêncio de Deus, que só é rompido, como manifestação divina, por aquela fonte que irrompe no local do sacrifício da donzela. Em 1976, ele deu uma declaração polêmica. Disse que Deus e ele se haviam afastado definitivamente. ''''Estamos na Terra e esta é nossa única vida.'''' Manifestação radical de um autor que antes acreditava, como Eugene O''''Neill, que toda obra dramática que não trata das relações dos seres humanos com Deus não tem valor. Bergman explicava que, desta maneira, queria dizer que toda a arte tem de manter uma relação com a ética. A esses temas, soma-se outro, muito forte - o horror que o grande artista sempre teve da burocracia e o da humilhação. Em seus filmes, há muitas vezes um personagem que sofre a humilhação como tragédia - e nenhum é tão trágico como o palhaço de Noites de Circo, ridicularizado pelos soldados cujos integrantes são todos amantes de sua insaciável mulher. Nos anos 70, a humilhação atingiu Bergman de uma forma avassaladora. Em decorrência de um problema com o fisco sueco, ele foi preso. Solto, exilou-se por um breve período na Alemanha, só o tempo de ali realizar dois filmes - O Ovo da Serpente, em 1979, sobre a gênese do nazismo, e Da Vida das Marionetes, no ano seguinte. O filme é uma espécie de Cenas de Um Casamento 2, filmado em preto-e-branco e ainda mais cruel e rigoroso do que o telefilme de 1974, com Liv Ullman e Erland Josephsson. Cenas de Um Casamento tornou-se tão emblemático da obra de Bergman que o cineasta, nos anos 2000, fez uma belíssima seqüência - Saraband, mostrando o que ocorre quando Liv e Josephsson se reencontram, mais de 30 anos após a separação. Seus primeiros filmes eram considerados muito teatrais e expressionistas. E, então, em 1956, o humor poético de Sorrisos de Uma Noite de Amor de alguma forma liberou Bergman para ousar, em termos de linguagem. O road movie existencial Morangos Silvestres mistura passado e presente nas mesmas imagens - uma lição que o grande diretor havia absorvido de seu compatriota Alf Sjoberg, quando fez Senhorita Júlia, baseado na peça de Strindberg, em 1951. Nos anos 60, a década que mudou tudo, Bergman incorporou a metalinguagem ao seu método. Em comparação com Jean-Luc Godard, o revolucionário do cinema francês, Paulo Francis gostava de dizer que Godard lera a orelha dos livros de teoria sobre estética e que Bergman lera e (absorvera) os livros completos. O que Persona anunciava prosseguiu com A Hora do Lobo, Vergonha e A Paixão de Ana. Na seqüência, Bergman realizou, em 1971, seu único filme em língua inglesa - O Toque do Amor, com Bibi Andersson e Elliott Gould. De volta à Suécia, fez o que talvez seja o mais belo de seus filmes, Gritos e Sussurros. O problema que a obra de um artista tão grande como Bergman coloca é justamente este. De uma produção artística tão rica, o que destacar? Todo Bergman pode ser resumido em dois filmes - Morangos Silvestres e Gritos e Sussurros. O professor Isak Borg atravessa os planos da realidade, da memória e da imaginação para resolver o enigma de sua vida. No fim, seu sorriso ambíguo indica que ele adormece feliz por finalmente se haver decifrado (mas pode ser que esteja morrendo). As três irmãs e a aia passeiam naquele jardim, na cena final de Gritos e Sussurros. Face a tudo que sofreram antes, é como se Bergman estivesse querendo dizer que a vida vale a pena, sempre, nem que seja por um fugaz momento, num dia de verão. Stanley Kubrick, outro grande autor, dizia que cinema é montagem. Bergman preferia acreditar que cinema é teatro. Como Jean Tulard afirma, ao encerrar seu verbete sobre ele no Dicionário de Cinema, tudo é teatro, da sexualidade a nossas relações com Deus. Bergman havia feito sua última aparição pública num evento em sua homenagem, realizado no começo do mês, na Ilha de Faro. Surgiu numa cadeira de rodas, abatido e cansado. A executiva do Swedish Film instituto (Instituto do Cinema sueco), Cissi Elwin, disse ontem - ''''É muito, muito estranho e irreal, porque Bergman é uma parte muito viva do cinema sueco.'''' A TV sueca interrompeu sua programação para exibir especiais e filmes do grande diretor. O premier sueco Fredrik Reinfeldt disse, numa declaração, que é muito difícil avaliar a riqueza da contribuição da obra de Bergman para o teatro e o cinema do país. ''''Seus filmes são imortais.'''' Qualquer cinéfilo assina embaixo desta declaração. Bergman realizou 54 filmes (e telefilmes), montou 126 peças e escreveu 39 obras para rádio. Jorn Donner, que o conheceu por mais de 50 anos e produziu Fanny e Alexander, disse que Bergman foi um dos maiores. Talvez fosse o último grande, já que da sua estatura (e idade) restam somente Michelangelo Antonioni e Manoel de Oliveira. Além dos Oscars e da Palma das Palmas, ganhou um prêmio honorário da academia de Hollywood (o Irving Thalberg Memorial, em 1971) e um Leão de Ouro especial, pelo conjunto da obra, no Festival de Veneza de 1983. OBRA PRINCIPAL CRISE (1946) MÚSICA NA NOITE (1948) PORTO (1948) SEDE DE PAIXÕES (1949) MONIKA E O DESEJO (1953) SORRISOS DE UMA NOITE... (1955) O SÉTIMO SELO (1957) MORANGOS SILVESTRES (1957) O ROSTO (1958) A FONTE DA DONZELA (1960) ATRAVÉS DO ESPELHO (1961) LUZ DE INVERNO (1962) O SILÊNCIO (1963) PERSONA (1966) A HORA DO LOBO (1967) VERGONHA (1968) A PAIXÃO DE ANA (1969) A HORA DO AMOR (1971) GRITOS E SUSSURROS (1972) CENAS DE 1 CASAMENTO (1973) A FLAUTA MÁGICA (1975) FACE A FACE (1976) O OVO DA SERPENTE (1977) SONATA DE OUTONO (1968) VIDA DAS MARIONETES (1980) FANNY E ALEXANDER (1982) DEPOIS DO ENSAIO (1984) SARABAND (2003) NOTAS DE UMA VIDA >>Ernst Ingmar Bergman nasceu no dia 14 de julho de 1918 na cidade universitária sueca de Uppsala. Foi humilhado e apanhou de seu pai, um pastor luterano que se tornou capelão oficial do rei da Suécia. >>Bergman iniciou sua carreira como roteirista e chegou a dirigir comerciais para escapar do desemprego. >>Diretor saiu do anonimato em 1955 com Sorrisos de Uma Noite de Amor, uma comédia de costumes sofisticada. O filme rendeu ao diretor o prêmio de melhor comédia de 1956, no Festival de Cannes. >>Ganhou reconhecimento internacional com o filme O Sétimo Selo (1957), que conta a história de um cavaleiro que procura pelo significado da vida jogando xadrez com a morte. Levou o prêmio do júri no Festival de Cannes de 1957. >>Bergman anunciou sua aposentadoria no cinema quando terminou o longa Fanny e Alexander (1982). Produzido em duas versões - de 3 e 4 horas -, o filme ganhou quatro Oscars em 1984, incluindo melhor filme estrangeiro. >>Ele dirigiu três filmes fora de seu país, entre eles, Sonata de Outono (1978), com Liv Ullmann e Ingrid Bergman. >>Foi casado cinco vezes e teve nove filhos, entre eles a escritora Linn Ullmann, filha dele com Liv.

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