PUBLICIDADE

Arqueólogo da verdade escondida

Em O Ornamento da Massa, Kracauer faz cartografia da vida cultural moderna

Por Francisco Alambert
Atualização:

Em seu livro A Sociedade do Espetáculo, o filósofo francês Guy Debord notou que a cultura contemporânea, entendida como uma forma-mercadoria, se tornou a "mercadoria vedete da sociedade espetacular", assumindo progressivamente "o papel motor do desenvolvimento da economia". Mais recentemente, o crítico cultural marxista norte-americano Fredric Jameson definiu os tempos "pós-modernos" como uma lógica eminentemente "cultural", na qual economia e cultura não se diferenciam. Muitos podem remeter, e com razão, essas ideias ao legado da Escola de Frankfurt, a conceitos tomados de Walter Benjamin ou de Adorno e Horkheimer. Mas dando um passo só atrás, chegamos à fonte dessa crítica à mercantilização e à absorção da forma da cultura na forma dominante do capitalismo tardio: chegamos à fonte chamada Siegfried Kracauer (1889-1966). O lançamento de O Ornamento da Massa (tradução de Carlos E.J. Machado e Marlene Holzhausen) é para ser comemorado. Ele preenche uma lacuna nas publicações brasileiras sobre cultura e sociedade modernas. Pois, até agora, a única obra de Kracauer publicada entre nós era seu estudo sobre o cinema alemão De Caligari a Hitler (Jorge Zahar, 1988), a mais influente análise do cinema pré-hitlerista e das formas do fascismo. Neste livro, utiliza uma imagem que em O Ornamento da Massa toma especial significado: a ideia dos "hieróglifos visíveis". Para ele, todos os fragmentos e imagens constituem o lugar de uma verdade escondida. O crítico cultural é o detetive, ou o arqueólogo, dessas imagens que a cultura moderna da distração revela mesmo quando se esforça por esconder. O título O Ornamento da Massa é retirado de um ensaio de mesmo nome, escrito em 1927, talvez o texto central do livro que só foi organizado por Kracauer em 1963. O volume agora lançado traz 24 textos, a maioria escrita durante a década de 1930 (portanto, dentro do breve período da República de Weimar), época em que Kracauer trabalhou como editor cultural do jornal Frankfurter Zeitung. Dividido em seis partes, os ensaios tratam de temas incrivelmente variados: desde teorias pioneiras sobre fotografia e cinema, passando por análises de mapas de cidades, livros populares, saguões de hotel comparados com Igrejas, judaísmo, Kafka, o cinema visto pelas "balconistas", a obra de Benjamin ou de Simmel, as dançarinas de cabaré. Uma cartografia animada da vida cultural do início da modernidade, em seus meandros mais surpreendentes: este é o tema deste livro. O método analítico de Kracauer é um programa de crítica da cultura, porém é muito diferente daquilo que hoje se chama "Estudos Culturais". Pois em seu método não há culturalismo algum, a abordagem do "banal" ou do cotidiano não se fecha em si. Kracauer se volta empiricamente para os objetos e ações que configuram a fenomenologia da vida comum, da cultura ordinária (no sentido que dará Raymond Williams, de "coisa comum") para buscar neles (e não exatamente através deles) a maneira com que a ideologia moderna toma forma. Por isso, o saguão de um hotel é inteiramente a vida contemporânea em sua particularidade reveladora da totalidade, da qual ele também é parte ativa e imediatamente dependente. A análise da forma como "matéria social decantada", tema da Escola de Frankfurt, está materializada neste analista das mensagens e sugestões calcadas em objetos reais, em sua "racionalidade" (ainda que aparentemente delirante). Para Kracauer, como para Benjamin, tratava-se de descobrir a verdade, mesmo que não intencional, mesmo naquilo que parece mais insignificante: "O conteúdo fundamental de uma época e os seus impulsos desprezados se iluminam reciprocamente", como ele escreve no ensaio que dá título ao livro. O arquiteto modernista austríaco Adolf Loos (com quem Kracauer tinha grandes diferenças) costumava dizer que todo ornamento é um crime. No ensaio O Ornamento da Massa, Kracauer faz a investigação desse delito. Descobre as afinidades racionais e históricas entre a geometria das coreografias das Tillergirls, dançarinas de cabarés populares cuja lógica formal dispõe o espetáculo como um ritual cênico mecanizado e homogêneo (no sentido do controle e da reprodução e organização mecânica de todos os movimentos), e a disciplinarização dos corpos e do cotidiano imposta pela racionalidade do capitalismo industrial. As dançarinas de maiô, assim como os operários nas linhas de montagem, são ornamentos: peças decorativas ou engrenagens de uma máquina de produção de espetáculo calculado para o fascínio, para a regularidade, para o apagamento da reflexividade e da ação livre. Kracauer entregava para o futuro as consequências dessa preciosa intuição analítica. Dez anos depois de O Ornamento da Massa, seu amigo Walter Benjamim traria um conceito para efetivar o que Kracauer descobriu, observando agora a organização mecânica do ritual público dos comícios nazistas: o cerne da política do fascismo era a "estetização da política". Vinte anos depois dele, Adorno e Horkheimer podiam dissecar, em sua Dialética do Esclarecimento, o processo moderno de transformação da razão em mito, o sentido destrutivo e retrógrado de uma organização social baseada na racionalidade que criou o campo de concentração, a bomba atômica e a Indústria Cultural. Quarenta anos depois, Guy Debord poderia ainda, sob os ventos de 1968 e sua derrota, definir a Sociedade do Espetáculo como o gozo final de uma sociedade na qual se "dominam os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente". Por isso, e por muito mais, esse livro pioneiro e genial de Kracauer é um dos fundamentos do pensamento radical do século 20. Francisco Alambert é professor de História Social da Arte e História Contemporânea da USP O Ornamento da Massa Siegfried Kracauer Cosac Naify 384 págs., R$ 69 Debate Nesta terça, às 19h30, o Instituto Goethe São Paulo promove debate sobre a atualidade do pensamento de Siegfried Kracauer. Participam Ismail Xavier (ECA-USP), Leopoldo Waizbort (FFLCH-USP) e Carlos Eduardo Jordão Machado (Unesp-Assis). Mais informações no 3296-7000.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.