Argonautas calculam tudo, mas negam a perfeição

Segunda montagem do grupo, Terra sem Lei, em cartaz só até domingo, oferece a idéia do inacabado, porém a precisão de detalhes transparece nas narrativas

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Por Mariângela Alves de Lima
Atualização:

Há dois anos, um coletivo teatral denominado Argonautas abrigou-se no Arquivo Histórico Municipal durante a gestação de seu primeiro espetáculo. Foi de importância decisiva o lugar onde o espetáculo foi pensado e formalizado e, em grande parte, O Que Morreu, mas não Deitou dialogava com a função institucional dos arquivos e com a arquitetura dos sistemas mnemônicos. São outras no momento as condições de produção do grupo e, além disso, a migração forçada por lugares cedidos por favor e a título precário é uma constante na economia da produção teatral. Sendo assim, emulando os heróis cujo nome emprestaram (os argonautas), os participantes do grupo soltam as velas em uma navegação que não perde de vista, por enquanto, o porto de origem. Embora estruturada sobre outro tema, a formalização do trabalho Terra sem Lei, agora em cartaz, não esquece a relação com as fontes para o estudo da história, fontes que funcionaram como espinha dorsal do espetáculo anterior. Desta vez, contudo, acentua-se o embate entre o registro e a apropriação ficcional ou, em alguns episódios, entre fato e interpretação. Articulado com uma seqüencia de narrativas cujos temas foram escolhidos pelos intérpretes, o espetáculo começa por negar a si mesmo, ou seja, não se apresenta como obra de arte, mas como um exercício cênico em constante mutação. Francisco Medeiros, orientador geral do projeto, abre a sessão explicando que são admissíveis neste caso alterações feitas pelo grupo de criação ou sugeridas pelo público e, para esse efeito, será instalado um parlamento congregando artistas e público depois da apresentação. Trata-se, na verdade, de um voto de fidelidade à essência volátil da manifestação teatral e à abertura incontrolável da trama simbólica. Além disso, os episódios desta epopéia contemporânea referem-se, de modo mais ou menos explícito, a experiências transgressoras que, de um modo ou de outro, só podem ser transpostas para a linguagem artística quando distorcidas pelo viés da emoção ou do cálculo para obter determinado efeito. O horror da bomba atômica, por exemplo, não pode exprimir-se pela exatidão estatística, que poderia apenas quantificar e descrever a partição da matéria. Para evocar uma ocorrência dessa magnitude, a recriação cênica propõe a desarticulação do discurso. Não são as imagens de mortos e feridos que a atriz invoca, mas o processo de atomização e desordem mental diante de uma vivência insuportável. Em todas as cenas, aliás, o núcleo significativo rememora a verdade artística produzida a partir de um acontecimento histórico ou de uma experiência pessoal do intérprete que idealizou a narrativa. Uma vez que se trata de um trabalho em processo, sujeito a modificações e intencionalmente inacabado, um dos pressupostos da carta de intenções anunciada no início do espetáculo não parece evidente durante a apresentação. A idéia do inacabado, da estrutura exposta ou do convite à intervenção e ao aperfeiçoamento fica de algum modo submersa pela execução precisa dos detalhes característicos e pela curva dramática que, de modo intencional ou fortuito, transparece nas narrativas. Talvez não seja intenção dos autores, mas o fato é que chegamos, por meio das narrativas, a extrair conclusões. E parece difícil interferir de algum modo em histórias que assumiram determinadas formalizações porque há um conteúdo implícito no modo como são realizadas. Não foram feitas ao acaso. O fato de veicular relações singulares e coletivas com a literatura, com os meios de comunicação, com a história e com a cidade onde vive o grupo, não faz do espetáculo um jogo teatral em estado puro,mas significam percepções amadurecidas e refinadas no plano da linguagem . São, enfim, histórias bem escritas - a dramaturgia de Licienne Guedes não desdenha a evolução dramática crescente e tampouco a sintaxe regular - representadas por atores que compõem personagens com detalhes visuais e inflexão elaborada. Há ambientes construídos com escassos elementos para informar e há bastante cálculo para obter efeito plástico. Só parecem sobrepostas e, portanto, dispensáveis as ''''costuras'''' metateatrais entre as cenas. Por alguma razão, o humor não é o ponto forte do elenco e as referências às dúvidas, à preparação das cenas e algumas ''''improvisações'''' previamente combinadas destoam da cuidadosa execução das diferentes histórias. O fato é que Terra sem Lei, apresentada como obra em processo, tem o grau de permeabilidade das simbolizações complexas. Tomara que o desejo de perfeição dos seus criadores não fure os olhinhos da cria.

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