Aprender a ver com olhos livres

Em A Visão em Paralaxe, Slavoj Zizek se vale de múltiplas referências para analisar a contemporaneidade

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Por Ricardo Lísias
Atualização:

Ao contrário de Mike Davis e Edward Said, por exemplo, Slavoj Zizek é o tipo de intelectual que deve ser pesado livro a livro. Não resta dúvida de que, dentro do panorama contemporâneo, alguns de seus ensaios estão entre os mais intrigantes e lúcidos. Outros, porém, parecem-me um tanto precipitados e indicam que o filósofo às vezes ou é inconsequente demais ou não percebe que o resultado de suas brincadeiras é só a oferta de munição, de grosso calibre, para o conservadorismo que, infelizmente, está de novo crescendo no Brasil. O livro de Zizek sobre Mao Tsé-tung, em tudo inaceitável , é um exemplo disso. Já A Visão em Paralaxe, que a editora Boitempo acaba de colocar no mercado, faz parte do lado absolutamente interessante da obra de Zizek. Às vezes complexo, outras iluminado, sempre denso e rico, o livro exige cuidado, talvez mais de uma releitura, e é cheio de nuances e detalhes. Zizek manipula uma quantidade enorme de referências, ligando a psicanálise ao cinema, unindo um ficcionista contemporâneo como Juan Jose Saer a Hegel e discutindo neurociência com política. A princípio, pode parecer que um referencial tão variado prejudique uma possível unidade ou, acusação mais clichê ainda para esse tipo de ensaio, impeça mergulhos em profundidade. Não é o caso: sendo incontornavelmente contemporâneo, tendo o nosso mundo como alvo exclusivo, Zizek sabe que a multiplicidade é obrigatória. Um viés apenas, seja qual for ele, já não dá mais conta da nossa sociedade. É muito difícil resumir em poucas linhas a proposta do livro, ou seja, o que é "a visão em paralaxe". Em termos gerais, trata-se de uma espécie de maneira alternativa (ou nova) de enxergar objetos que, por estarem às vezes comprometidos, outras em ligação muito íntima, ou que às vezes são idênticos, mas ocupam tempos e espaços diferentes, em alguns casos não são visivelmente apreensíveis. Simplificando muito, é uma mudança no olhar. A crise no marxismo, por exemplo, será melhor compreendida se for observada em paralaxe. O que não pode escapar ao leitor é a agudeza com que Zizek constrói o seu conceito: para apresentar a paralaxe ele adota um viés em... paralaxe! Assim, o humor, que quase nunca aparece em livros de filosofia, está sempre presente, bem como inesperadas alusões a sexo, arte moderna e tortura em Abu Ghraib. Aliás, o tópico sobre a célebre cadeia iraquiana (que agora virou presídio-modelo, o que exigirá uma visão em paralaxe de sua realidade...) é um dos mais bem acabados do livro e talvez mereça continuação. Entre parênteses, eu tenho a impressão de que a fama de Zizek no Brasil também exigiria uma visão em paralaxe, já que ele é em tudo diferente do nosso padrão de intelectual: não pratica o corporativismo, discorda dos colegas citando-os nominalmente e, o tempo inteiro, relativiza o próprio lugar. O trecho a seguir é exemplar disso: "Hoje, a ameaça não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ser ?ativo?, de ?participar?, de mascarar a Nulidade do que acontece. Todos intervêm o tempo todo, ?fazem alguma coisa?, os acadêmicos participam de ?debates? sem sentido e assim por diante, mas a verdadeira dificuldade é dar um passo para trás, é se afastar disso tudo." Mesmo esse esforço de constrangimento talvez faça parte do projeto de Zizek: expor a precariedade do próprio meio, não ter essa tentativa sequer notada e ser celebrado por inteiro, denunciando assim, outra vez e de forma ainda mais aguda e violenta, o grave problema das instituições intelectuais, ou de qualquer instituição. Se for mesmo isso, então o parágrafo inicial do meu texto deve ser relativizado: não devemos dividir a obra de Zizek, mas observá-la em paralaxe. Aqui, então, Zizek de fato entra em um grupo muito restrito de pensadores que adotam na forma do texto a hipótese que pretendem desenvolver. Trata-se de um procedimento raro e muito sofisticado. No caso dele, ainda, o artifício vai além e engloba a sua própria postura intelectual. Levar um intelectual como Zizek a sério (como merece um ensaísta de sua estatura) é então observá-lo mudando o olhar. Ele está tentando fazer o mesmo com a filosofia. Com um projeto muito agudo de oferecer ensaios em graus variados de importância, e com possibilidades maiores ou menores de ser aceitos, talvez às vezes até apelando para ser advertido (na internet é possível achar vários vídeos em que ele se comporta como um ator cômico e canastrão), Zizek procura a todo custo trazer a paralaxe para o centro do debate e, assim, tentar de fato empreender uma mudança. Por enquanto, inclusive e talvez sobretudo no Brasil, ele tem fracassado: a postura de Zizek e sobretudo A Visão em Paralaxe demonstram como por aqui está cheio de gente que pensa que pensa. Ricardo Lísias, escritor, é autor de, entre outros, Duas Praças A Visão em Paralaxe Slavoj Zizek Tradução de Beatriz Medina Boitempo, 251 págs., R$ 74

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