Aos outros tudo, menos a tolerância

Pornografia, de Witold Gombrowicz, faz do preconceito o núcleo da sua ficção

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Por Vinicius Jatobá
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A vaidade é a mãe caprichosa da cegueira, mas em Gombrowicz produziu um estilo cinzelado pela clarividência - do olhar, do humor, do erotismo, da aventura. É impossível entender o polonês Gombrowicz sem um giro de leitura necessário: colocar a voz do narrador (e autor) num trono, e de um canto humilde da nave observar sua plena performance: afetada, agressiva, virulenta, teatral. Apesar de não existir nada semelhante a Gombrowicz, seus narradores dividem com os de Bernhard, Hrabal e Bolaño a mesma atitude descentrada e antimitificante - ironizam, decompõem e ridicularizam. Mas de onde nasce a particularidade da voz de Gombrowicz? Da sua postura aristocrática, da sua maneira pouco generosa de observar os outros, do seu manejo declarado do preconceito. A literatura cada vez mais se afasta de um enfrentamento do torto nos termos do torto: narradores são puros, compreensivos, iluminados, generosos e sem preconceitos. Uma neutralidade do olhar narrativo, curiosamente em tempos de distopia e demolição de projetos políticos, tem levado a literatura para um terreno que sequer ela parece ter consciência que está ocupando: a de porta-voz do bom-mocismo. O núcleo duro do conflito literário é a intransigência, e em última instância o próprio preconceito, porque é do choque e tensão entre a incapacidade de se comunicar das personagens que surgem os grandes abismos e contradições da alma humana. Narradores que compreendem tudo, capazes de construir seus mundos dando oportunidades iguais a todos, sem jamais emitirem qualquer fala agressiva se aproximam mais de uma suposta missão evangelizadora de elevar a consciência pública do que da própria carnalidade do cotidiano das pessoas, e que é a própria matéria da literatura. As vozes dos livros parecem que são de plástico, mas as pessoas são feitas de carne. É por isso que autores como Roth, Bernhard, Bolaño, Naipaul, Kertész, Lobo Antunes são capazes de cativar tanto o emocional do leitor para além da experiência da própria leitura - seus narradores veem os problemas do mundo, mas nunca eximem sua própria carne da matéria do problema. São, evidentemente, parte do problema. Denunciam o antissemitismo, mas são antissemitas; substituem uma violência pela outra; sentem saudade do poder que detinham; desprezam abertamente outras classes sociais; são mesquinhos e pouco generosos; não possuem paciência com o que veem como fraqueza. Isso não quer dizer que os autores padecem da mesma carne dos narradores que inventam (e não importa); essa construção narrativa apenas indica que o narrador que vê tem um corpo que sabe, mesmo em silêncio, aquilo que a cultura ao seu redor sabe, e não escapa nunca dessa cultura porque ninguém escapa da história. Com belíssimo projeto gráfico a Companhia das Letras parece estar disposta a editar todo Gombrowicz no Brasil. Os primeiros dois livros publicados foram os anárquicos romances Cosmos e Ferdydurke. Dois jovens se encontram durante uma peregrinação e juntos presenciam o mais estranhos dos crimes: um pássaro enforcado. Como num dos melhores romances de Agatha Christie temos o cenário logo montado - uma pensão cujos donos são uma das famílias mais excêntricas da literatura. Um crime absurdo num lugar absurdo com personagens absurdas sendo investigado absurdamente - esse é o mundo do provocante e divertido Cosmos. Vibrante, bem-humorado, disforme. Uma pérola. Tudo que em Cosmos parece flertar com uma arte de vanguarda - demissão do enredo, uma tensão evidente entre narrativa e ensaio, a necessidade de jogar constantemente com ideias e conceitos - em Ferdydurke está mais diluído pelo desejo de polemizar diretamente com o público polonês. Mesmo que em suas memórias afirme ser Ferdydurke mais um panfleto, há no texto uma inegável qualidade romanesca - a construção panorâmica das personagens, a preocupação de encadear peripécias envolventes, o manejo progressivo da informação de forma a gerar surpresas e expectativas. Um homem acorda criança e é confinado num internato. A partir daí, de um narrador adulto confinado em um corpo jovem e preso num universo juvenil, o mundo da imaturidade parece ser o mais hediondo dos pesadelos. Mais uma vez Gombrowicz trabalha com o par de personagens - alguém mais bufo, outro mais irônico. No entanto, a excentricidade de Ferdydurke é que o narrador conjura e faz par consigo mesmo: a memória do adulto no jovem e o inédito vigor físico do corpo jovem habitado pela mente adulta: o espantoso - e hilário - é justamente imaginar esse jovem histriônico que parece nosso sobrinho angelical mas pensa como nosso tio rabugento. O humorismo de Gombrowicz nasce disso, dessa voltagem poética de uma imagem forte - o assassinato ridículo de Cosmos investigado com meticulosa seriedade; a pesada consciência filosófica habitando o rosto inocente de uma criança. O recentemente editado romance Pornografia é mais uma variação desse conflito entre estados de alma: a vibrante e mutável juventude contra a necrosada e asfixiada maturidade - e de como a malícia é capaz de corromper a espiritualidade que mal se aventura para além do broto. Mais uma vez dois amigos citadinos vão para o campo, expurgados pelos fantasmas da ocupação nazista da Polônia. O romance é um exercício de voyeurismo de que seu belíssimo título faz um desserviço porque mais do que a descrição do espaço gráfico do suor do corpo, a narrativa se ocupa do ressentimento de dois homens maduros diante do primeiro amor abertamente sensual de um casal de jovens - o desejo transbordante com que se conjuram pelas gretas recônditas do campo alimenta a fantasia dos companheiros Frederick e Witold. Há uma reviravolta brusca no enredo que pode parecer algo esquemática e forçada; no entanto, Pornografia é um romance que necessita do improvável para que avance porque depende, como na música, de motivos em redor dos quais organiza sua massa de pensamentos. É como se fosse um proto-Kundera, faltando-lhe justamente charme para se tornar mais fluente em como reúne, na mesma página, pensamento e narrativa. Ou mesmo escopo: porque há um conflito textual entre um narrador que pensa e um narrador que sente, e nem seu pensamento sobre o Eros é sensual e sequer seu desejo conjurando a Razão é efetivamente intelectual. Por esse motivo, muitos críticos consideram seus Diários o melhor de Gombrowicz: porque longe do constrangimento da necessidade de persuasão de uma "obra" - que deve ter começo e fim, um desenvolvimento coerente -, seguindo apenas o sabor dos dias e usando o dia (sentido fechado) como gancho da massa verbal autocontida, o pensamento entra em ebulição num palco e cenário afeitos ao seu desenvolvimento, seja num aforismo ligeiro como no rumor caudaloso de muitas páginas. Talvez a "fraqueza" de Pornografia esteja na seriedade com que Gombrowicz desejou realizar esse projeto - não há o mesmo humorismo a facilitar a entrada do leitor no universo que descreve, fazendo com que tudo gravite num ambiente moral que soa demasiadamente calculado quando se considera o sensual título escolhido, e o próprio material passional com que seu autor decidiu trabalhar. Vinicius Jatobá é crítico literário Pornografia Witold Gombrowicz Tradução de Tomasz Barcinski Cia. das Letras, 208 págs., R$ 42

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