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Antígona em São Paulo: um diálogo entre duas tragédias

À luz do teatro grego, caso Isabella evidencia lições sobre o mundo brasileiro

Por Leda Tenório da Motta
Atualização:

Na cordialidade brasileira, todo mundo é tio. É de "tia" que as crianças chamam a mulher do pai quando esta não é a sua mãe. A menos que a chamem simplesmente pelo nome, "fulana" ou "cicrana". Por outro lado, é "a companheira", ou a "segunda mulher", ou a "nova mulher",ou ainda a "nova esposa" de fulano que dizemos para nomear a mulher com quem alguém se recasou ou se juntou. Saído do domínio das bruxas, essas representantes da mãe má, desde a noite dos tempos, que é o tempo das histórias de fada, a palavra "madrasta" é no mínimo estranha como referência à segunda mulher do pai de Isabella Nardoni, Ana Carolina Jatobá. Primeiro, porque a madrasta é aquela que, na falta da mãe, está na função dela. Não é o caso da mulher de Alexandre Nardoni, que, por melhores que pudessem ser as relações entre a menina e a "tia", antes do surto ou do curto-circuito que talvez a tenha levado a esganá-la, só se encarregava de Isabella nos fins de semana estipulados para suas visitas ao pai. Segundo e mais importante, porque, justamente, não é assim que falamos. Como também não nos ocorre dizer a "enteada" ou o "enteado" para uma criança que vai passar o fim de semana na casa do pai recasado com outra pessoa. Isso torna, aliás, surpreendente a maneira como, até mesmo na Rede Globo, que normalmente observa a regra da coloquialidade - os deles e os delas da Globo, como diria Caetano Veloso - prosperou "a madrasta", em lugar de "a mulher" de Alexandre Nardoni, trocando-se, assim, também no registro do padrão de qualidade, uma formulação em bom português por outra pomposa, falseada e punitiva. É que, em sua desenvoltura, "a companheira" ou "a segunda mulher do pai" exporiam demais a falência do casamento e da família a que chegamos, daí esse tipo de expressão, embora cada vez mais corriqueiro, incomodar até mesmo a representação da vida como ela é no jornalismo botânico, diriam alguns. É que "madrasta" já é um veredicto, uma condenação prévia, daí sua utilidade, diriam outros. Tudo isso é razão sociológica e é verdade. Mas, na terrível história deste infanticídio, há mais estranhezas envolvendo palavras, e mais palavras feitas para nos deixar aturdidos, que só aquelas que a sociologia saberia explicar. Algumas são, visivelmente, da alçada da psicanálise. Como a coincidência entre os nomes da primeira e da segunda mulher do pai, que se chamam ambas Ana Carolina, e têm sobrenomes na mesma gama semântica - Oliveira e Jatobá -, ou entre o nome do pai de Ana Carolina Jatobá e de seu marido, que se chamam ambos Alexandre. Juntamente com Freud, poderíamos pôr isso na conta de uma psicopatologia da vida cotidiana. Mas se estas recorrências dos significantes e significados já intrigam, tanto quanto a maneira subitamente protocolar com que passamos da boa tia à bruxa cruel, nada chega perto da vertigem de uma outra confusão onomástica que, desde o indiciamento de Alexandre Nardoni e sua segunda mulher, passa a rondar o caso Isabella. De fato, se Alexandre Nardoni, como nos afiançam a promotoria, a polícia e a imprensa, e acredita a opinião pública, pensando que sua filha estivesse morta, e agindo em cumplicidade com a mulher, que a teria começado a matar, a atirou do sexto andar de seu apartamento, para encobrir o assassinato, tomando o cuidado de precipitar o corpo sobre a grama, para não desfigurá-lo, e se foi em conseqüência da queda que a menina morreu, então, estaríamos diante de um assassino doloso e culposo ao mesmo tempo, voluntário e involuntário de uma só vez. Doloso porque, nesse caso, Alexandre Nardoni teria cooperado com a mulher que intentou matar sua filha, assumido o seu intento, consentido com ele, a ponto de desfazer-se do corpo e buscar inculpar um terceiro, ou terceiros, e agindo com astúcia ou fraude, que são as duas palavras que todos os dicionários empregam para definir o "dolo". Culposo porque, acreditando que a filha já estivesse morta, como parece provar o fato de que não chamou para ela nenhum socorro, a atirou pela janela, e, sem querer, com as próprias mãos, a matou. Se acaso supuséssemos um coro grego antiqüíssimo circulando em volta desta tragédia paulistana das imediações do Tucuruvi, onde fica o Edifício London, é isto que, no desempenho de um de seus principais papéis - deplorar o horror - esse coro trágico teria que fazer valer: sem querer, com as próprias mãos, a matou! E isso significaria entoar que o pai foi um joguete dos deuses! Ainda que, em alguns autores, como Sófocles, os heróis trágicos se debatam contra a sina que os faz rumar inapelavelmente para um fim abjeto, e busquem escapar dela, o homem como joguete dos deuses é a própria condição da personagem de tragédia, a própria essência do trágico. Assim, neste infanticídio de pai para filha, que parece ensombrecer todas as palavras, mais que na sociologia e na psicanálise, estamos na literatura. Tudo se passa como se a vida imitasse a arte. Na Antígona, que encerra o ciclo das tristíssimas histórias de Sófocles em torno da família de Édipo, a personagem que dá nome à peça é um desses heróis que quer escapar da sorte, tomar seu destino em mãos. Nos nossos exercícios escolares, só vamos até Édipo Rei. Mas Sófocles escreveu seis dramas, quatro deles perdidos, sobre essa gente do clã maldito dos Labdácias que está envolvida com o casamento de um filho-joguete-dos-deuses com a própria mãe, núpcias que rendem uma linhagem impura de príncipes e princesas, que vão, aos poucos, sendo expurgados de Tebas, para que a polis se limpe dessa abominação. Bem menos conhecida, a segunda fase desse processo expiatório é Édipo em Colono, cujo título alude ao lugarejo ao lado de Atenas em que Édipo se exila e morre de dor. O último é Antígona, que trata da guerra fratricida entre os descendentes homens da casa de Édipo, rivais na disputa do trono, da morte dos dois príncipes, um pela mão do outro, e da luta da irmã para enterrar um dos irmãos, condenado a apodrecer sobre a face da terra, sem sepultura, segundo uma nova lei do reino, por ter atentado contra Tebas, quando o outro irmão governava. Na última peça de Sófocles, Antígona ergue-se sozinha contra toda uma cidade para enterrar Polinice, morto em meio às escaramuças que cercam sua tentativa de tomar o poder, perdido para o irmão Etéocles. Quando os dois irmãos entredevoram-se e perecem, é Creonte, tio deles, que assume o governo e faz promulgar contra Polinice a lei do não-sepultamento. Desrespeitando a ordem, Antígona, que está prometida ao filho de Creonte, realiza o funeral do irmão. Ela é condenada à morte e se suicida, gesto imitado pelo noivo. É a dizimação dos Labdácias e o começo da desgraça de Creonte, prevista pelo cego adivinho Tirésias, que vem lhe dizer que errou ao manter o seu édito cruel. Uma das dimensões fascinantes da peça é que ela se presta a discussões jurídicas, políticas e religiosas com as quais, até hoje, estamos envolvidos. Com 2.500 anos de antecedência, estão aí cifrados os embates entre o Estado e o sujeito próprios da vida republicana, embates que repercutem, então, as contradições inerentes à passagem de uma Grécia mítica a uma Grécia democrática e filosófica. Assim como é plena de dimensão psicológica. Pois estão dados aí também temas como a maldição da parentela, a presença da morte no cerne das relações entre pais e filhos, toda essa infelicidade de que a psicanálise, fazendo uma ponte entre Sófocles e Shakespeare, Édipo e Hamlet, tiraria um mundo. São essas nuanças da psicologia fina ou da vida psíquica profunda que têm permitido a alguns tomar Creonte não como um déspota mas como aquele que, por sua vez, quer salvar uma cidade, expulsar a peste de seus domínios, impedindo que a filha de Édipo se case com seu filho, de modo a perpetuar a maldição. Nessa linha interpretativa, ele é também aquele que desmancha a absoluta confusão nomenclatural - o filho que é o esposo de sua mãe, o pai que é o irmão de seus filhos, e assim por diante, que o casamento edipiano desencadeou. E isso tem o interesse suplementar de nos permitir reinterpretar não apenas Antígona mas todo o ciclo de Édipo como uma tragédia da confusão dos nomes e dos papéis regulados pelos nomes, com tudo que esse desgoverno tem de atentatório à civilização. Mais fascinante ainda é que isso pode ter a ver com a cordialidade. Tanto assim que, em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda, pensador dos atropelos da nossa civilidade, nossa particular maneira de viver as relações entre o Estado e a família, fazendo de um a continuação do outro, vai tirar de Sófocles lições sobre o mundo brasileiro, em que todo mundo é tio. Se for verdade que o pai de Isabella matou e não matou voluntariamente a filha, haveria um paradoxo, uma tragédia dessa ordem da desorganização estrutural no caso Isabella Nardoni. Não só porque, nesta triste rede de nomes e parentes confundidos, vemos a lógica enlouquecer, junto com a gramática. Mas porque, ao relegar à grama do jardim do Edifício London o corpo da filha, que acreditava morta, mas que ele mesmo iria matar, Alexandre Nardoni, que não chama o resgate, nem cuida, como pai, dos funerais, de algum modo abandona o cadáver e aflora a ignomínia do não-sepultamento, atentando contra outra regra civilizatória. Seria o clamor das pessoas às portas das casas, delegacias e presídios que ouvimos hoje uma espécie de recondução das vozes de um coro grego trágico cantando o fatídico de nossa existência, que algumas famílias malfadadas têm na cidade a missão de relembrar? Leda Tenório da Motta é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Proust - A Violência Sutil do Riso (Perspectiva, 2007)

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