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Andrei Rublióv integral, agora em livro

Roteiro do épico dirigido por Tarkovski em 1966 chega às livrarias pela primeira vez, 40 anos após sua consagração em Cannes

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A primeira observação do leitor do roteiro literário de Andrei Rublióv, que em 1966 serviu de base para a filmagem do épico russo de Andrei Tarkovski (1932-1986), é que se trata de uma obra superior em extensão à versão cinematográfica. São, de fato, 5 capítulos a mais (14, no total) no roteiro escrito em parceria com o também cineasta Andrei Konchalovsky e só agora publicado no Brasil (Editora Martins, tradução de Márcia Vinha, 312 págs., R$ 44), quase 40 anos depois de Andrei Rublióv ganhar o prêmio da crítica internacional no Festival de Cannes de 1969, obrigando as autoridades da então União Soviética a liberar o filme, o que foi feito apenas dois anos depois, em 1971. Mesmo nessa ocasião, a versão exibida nos cinemas foi a reduzida, com cortes impostos pelos censores do Estado soviético, que não viam com bons olhos a alegoria de Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do artista - no caso, o maior pintor de ícones da Rússia, o monge Andrei Rublióv, que viveu no século 15. O filme, depois de mutilado pela censura soviética, seria finalmente resgatado em sua versão original graças aos esforços da montadora Lyudmila Feiginova, que escondeu sob sua cama uma cópia integral da versão do diretor, de 205 minutos, a mesma que circula hoje na edição do DVD (lançado no Brasil, pela Continental). Andrei Rublióv, que a produtora russa Goskino criticou por sua longa duração e cenas de violência, finalmente é visto como imaginado por seu realizador. Com a publicação do roteiro literário - assim chamado por ser mais ambicioso que um simples roteiro cinematográfico - ficam ainda mais claras as intenções do mais influente cineasta russo do século que passou depois de Eisenstein. Tarkovski pretendeu mesmo discutir o papel do artista e da fé na sociedade russa, desordenada e bárbara desde seu marco zero, quando tártaros obrigaram o povo a unir forças para sobreviver à fúria genocida do invasor. O protagonista dessa história não é, porém, uma entidade coletiva, mas um monge que fez voto de silêncio e peregrina por uma terra desolada em busca de trabalho junto a outros dois companheiros. Rublióv (o ator Anatoli Solonitsyn, morto prematuramente de câncer, aos 47 anos, em 1982) é quase um santo protoexistencialista - em que pese o paradoxo - nessa parábola sobre a perda da fé e sua conseqüente reconquista. Personagem periférico no filme que leva seu nome, o pintor de ícones Andrei Rublióv surge no livro menos misterioso que no filme. Talvez seja a única perda em comparação ao que ficou registrado na tela. Em contrapartida, o que parecia ser um ambíguo manifesto político contra as liberdades individuais ganha uma dimensão bem mais ampla com a leitura do roteiro, traduzido com muito critério por Márcia Vinha. A tradutora foi atrás não só das invenções sintáticas de Tarkovski (filho de um poeta, nunca é demais lembrar) como dos valores simbólicos vigentes na época de Rublióv, como os longos cabelos das moças virtuosas russas, cobiçados pelos tártaros, que identificavam a dignidade e a pureza das mulheres da época. Para quem não viu o filme, divido em sete capítulos, um prólogo e o epílogo, essa cena dos longos cabelos cortados pelos sabres dos tártaros é contada por Daniil Tchiôrni, o quarentão entre os dois companheiros de viagem de Rublióv. Aos 23 anos, o pintor de ícones tem quase a metade de sua idade e sete anos a menos que Kiril, outro egresso do mosteiro que parte em busca de trabalho. Já a partir da escolha de três diferentes temperamentos, Tarkovski define sua intenção de reunir os três anjos do ícone mais famoso de Rublióv - que representam a Trindade - numa única entidade à deriva por uma terra de bárbaros. Andrei é o observador, calado, misterioso, uma representação do Espírito Santo que desce à Terra para encarnar um artista de vocação humanista. Daniil é o resignado, pronto para o sacrifício. Kiril, a encarnação da lógica, inteligente e ciumento como o deus irascível do Velho Testamento. Durante uma tempestade, os três buscam abrigo numa espécie de depósito-hospedaria, onde um saltimbanco diverte os mujiques contando piadas obscenas e ridicularizando Igreja e Estado. Nesse verão de 1400, o saltimbanco é, de fato, o único ser livre do local, sem compromisso com as instituições - e por isso mesmo a primeira vítima da fúria militar de um guarda que invade o depósito e o joga contra a parede. No filme, essa seqüência é precedida pelo prólogo, em que um camponês se atira do telhado de uma igreja montado num precário balão, esborrachando-se no chão, antes mesmo do saltimbanco. Um é vítima do sistema. Outro, do desejo escapista de se distinguir da matula selvagem que olha, admirada, esse Ícaro medieval se arrebentar. Como em todos os filmes de Tarkovski, o que está em jogo é essa polarização entre o desejo de transcender e a resignação do ser à miséria material. A formulação poética desse embate já foi vista como excessiva e, por vezes, até como reveladora da vocação fundamentalista do cineasta. Seja como for, o fato é que Andrei Rublióv é um grande painel sociológico da Rússia medieval em busca da própria identidade. Rublióv reencontra a fé perdida ao testemunhar o massacre de seus pares e rituais pagãos. E a reencontra num inocente garoto, filho de um fabricante de sinos. Será nesse menino ameaçado de morte, se não for capaz de forjar um sino, que Rublióv, esse cronista da vida medieval, vai reencontrar o espírito missionário de criar beleza e arte religiosa para um mundo laico, bárbaro e hedonista. Isso depois de se recusar a dar uma única pincelada no afresco do Juízo Final na igreja de Vladimir. Como poderia ele, um simples mortal, ameaçar os fiéis com o fogo do inferno? Nenhum artista digno desse nome faria isso. Uma lição para nossos criadores contemporâneos não esquecerem.

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