Andando de costas

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Consolei-me com o que o Senado aprontou com o seu povo, refletindo sobre a natureza social dos ''''curupiras'''', essas entidades mestras na cada vez mais complicada arte de andar de costas. No terrível ofício de desmanchar instituições e valores que construímos com inusitado esforço e, muitas vezes, com enorme sacrifício. Nada mais adequado e pungente para os inimigos da democracia liberal - para quem, amantes dos regimes antiigualitários, odeia as disputas eleitorais que (bem ou mal) são o berço da competição contida e norteada por um acordo coletivo - do que ter como exemplo das vergonhas burguesas e, da célebre desfaçatez das elites, um Senado incapaz de operar segundo o bom senso das regras mais comezinhas da ética. Um Senado que prefere racionalizações a fatos. Um Senado que opta pelo legalismo regimental e, seguindo à risca as hierarquias do ''''Você sabe com quem está falando?'''', troca o julgamento do que foi feito pelo quem faz. Estamos ''''curupiras''''. Deles, diz Câmara Cascudo no seu magnífico Dicionário do Folclore Brasileiro: ''''Um dos mais espantosos e populares entes fantásticos das matas brasileiras. Curupira: de curu (contração de corumi e pira, corpo, corpo de menino, segundo Stradelli. O Curupira é representado por um anão, cabeleira rubra, pés ao inverso, calcanhares para a frente.'''' No mesmo verbete, Cascudo diz que os curupiras surgem na nossa imaginação social já em 1560, mencionados pelo venerável e santificado Padre Anchieta. Em seguida comenta como, na Amazônia, o curupira, tendo os pés virados, vai ''''deixando rasto mentiroso'''', fazendo com que caçadores descuidados se percam na floresta. Sua marca comunicativa é um forte assovio, realizado com a intenção de atordoar e transviar mateiros, viajantes e - hoje em dia - eleitores do caminho certo. Ninguém melhor do que uma entidade enganadora, malandra, arisca, ''''política'''' - governada pela esperteza da hora, pelos interesses pessoais imediatos e partidários; pelo levar vantagem em tudo, que acabam promovendo longas caminhadas de costas, para personificar os últimos acontecimentos do Senado Federal. Fernando Henrique Cardoso está rigorosamente certo. Conforme diz, numa entrevista à revista Piauí, a única coisa que funciona hoje no Brasil é o mercado. Ampliando sua opinião, diria que sem a velha e tão malfalada ética do capitalismo, estaríamos todos perdidos pela mesquinhez do nosso espírito coronelista que está na base dessa triste absolvição de Renan Calheiros. Tudo indica que os pés da ''''herança maldita'''' levam para frente. Pena, entretanto, que na política e na burocracia, nossos pés sejam de ''''curupira'''' e nos levem para as sendas do atraso e de uma, a essas alturas, insuportável ausência de coerência moral. Pois se com o plano real provamos a nós mesmos que se pode matar o tal dragão inflacionário com negociação e continuidade gerencial, no plano da política continuamos andando para trás. Penso que o Brasil é uma das poucas sociedades do planeta que têm heróis nacionais com pés virados, e com uma só perna, como o Saci-Pererê. Coisa extraordinária essa presença de figuras com dificuldade de caminhar e equilibrar-se, e que andam definitivamente para trás, como os ''''curupiras'''' que estão claramente associados ao hibridismo nacional como um modelo cultural. De fato, se somos marcados, como manda a nossa fábula das três raças e de seus múltiplos hibridismos subseqüentes - pois entre nós, branco com negro resulta em mulato; índio com branco, em caboclo (mameluco ou curiboca); negro com índio; em cafuzo; e, da mistura de mamelucos, curibocas, mulatos e cafuzos, surgem outros tantos tipos intermediários, produzindo uma mistura dos misturados - o que temos é uma lógica não de indivíduos, mas de relações. Neste modelo racista, paradigma de um bom pedaço das explicações mais atrasadas do Brasil pelos brasileiros, os intermediários são estradas de mão dupla, que puxam para frente e para trás. Daí, sem dúvida, a nossa condescendência pela permissividade das misturas que podem ocorrer, desde que cada qual fique no seu devido lugar. No carnaval e na cultura popular, o mulatismo é bom e leva pra frente; na politicagem que engendra corrupção e demagogia, ele é mau e explica o atraso... Pois bem: se uma mestiçagem híbrida, uma mistura da mistura, ainda é o modelo cultural, fica mais fácil descobrir de onde vêm esses heróis de pés virados do folclore nacional. Pois se os males do Brasil resultam dessas misturas, forradas pela luxúria, de raças tristes e atrasadas, como não ter esses heróis folclóricos que andam pelo avesso do avesso; e, nas altas esferas políticas, seguem o caminho do direito do direito? Num plano profundo, os heróis de calcanhares para frente, essas figuras que fazem perder o rumo, seriam normais numa sociedade que jamais conseguiu se haver com práticas igualitárias, embora seja vidrada pela igualdade escrita nos seus códigos jurídicos e nas suas normas políticas.

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